sábado, 11 de janeiro de 2014

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Clarice Lispector, 93 anos!


 CARLOS VIEIRA
Estou num voo com destino à Maceió. Maceió, das terras dos Marechais, do contraste implacável da orla com a pobreza do seu interior, da beleza de um mar onde o reflexo do sol nas águas, e as diferenças de profundidades criam uma cor de arco-íris, um leque multicolorido e polifônico. Pois bem, ali viveu poucos anos de sua infância, a nossa Clarice, após ter chegado de Haia. Hoje, se ainda viva literalmente, pois em vida ela continua dentro de nós, estaria nos alegrando e nos aterrorizando com sua escrita. Porque enfatizo alegria e terror? Porque esse foi sempre o caminho dela; a bipolaridade afetiva da vida e dos seres humanos, nessa travessia entre o nascer, o tentar existir e o morrer.
Escolho para saudar a nossa eterna escritora, uma obra que por si mesma revela essa oscilação emocional diante de fatos da vida humana: a constante turbulência de sentimentos que brotam de um vazio, percorrem experiências agradáveis e desembocam em momentos aterrorizantes. “Água Viva”, escrita em 1973 – uma verdadeira experiência ousada da autora: ter a coragem de conviver com a estranheza e o medo de experimentar o “antes do pensamento”, e a alegria de sentir o nascer da palavra. Confesso que, a primeira vez que tentei ler Água Viva, à medida que lia e deixava entrar em minha alma os temas implícitos em sua prosa poética, fui sendo acometido de uma considerável crise de labirintite! Ler Clarice é “tirar os pés da terra” como insinua nosso poeta Affonso Romano de Sant’Anna em seu recente livro em parceria com Marina Colasanti: “Com Clarice”.
Nesse instante que escrevo, voando para minha terra natal, tive uma imagem: Água viva é uma alga do mar que só aparece mais comumente na época das chuvas. A água viva em seu nado por sobre as águas, ás vezes nos toca, enrola-se em nosso corpo e produz uma toxina alérgica que arde profundamente. Lembro-me quando criança, que a maneira de se livrar dessa serpentinha marítima era voltar a nado velozmente para a praia, e com a ajuda da areia, retirá-la do corpo. Escutei histórias de pessoas que foram hospitalizadas com risco de espasmo de glote. Mas, Água viva também é vida, é água uterina, placentária, prenhe de vitalidade. Assim é o texto de Clarice – vivo na vida e vivo no terror de viver. Só uma pessoa que consegue viver experiências de prazer, êxtase e terror, sem necessariamente enlouquecer, pode nos ensinar a viver ou ter a ousadia e a coragem de viver a “descoberta do mundo”.
Observemos esse instante, escrito na página 33 do livro: ”Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar para a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto do nunca. Também gosto do sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga tão indiretamente e intimamente? No fundo de tudo há a aleluia...Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo. Sou um coração batendo no mundo. Você que me lê que me ajude a nascer. Espere: está ficando escuro. Mais. Mais escuro. O instante é de um escuro total. Continua. Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma luminescente. Barriga leitosa com um umbigo? Espere – pois sairei desta escuridão onde tenho medo, escuridão e êxtase. Sou o coração da terra... Agora as trevas vão se dissipando. Nasci. Pausa. Maravilhoso escândalo: nasço”.
Clarice é isso, é a capacidade e sensibilidade de uma pessoa genial que mergulha no vazio, na morte da vida e, de repente ressuscita, vive, entra em êxtase com a beleza do viver. Clarice nos eleva, nos faz sentir ínfimos e potentes, nos lança no escuro, no vazio, “antes do pensamento” no entanto nos deixa contentes quando a “palavra” nasce, com a explosão magnífica e estonteante da arte da prosa poética. Clarice coloca em questão o que se encontra do “outro lado do espelho”. Do outro lado do espelho é o descobrimento do Outro, é o susto e a alegria que não sou somente eu, o habitante desse planeta. “Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconseqüência. Liberdade? É o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e agüento-a como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo”. 
Poderia me estender por horas a fio, associando, improvisando sobre os vários temas dessa obra intrigante e fascinante. “Água Viva” é vida, vivida, sofrida, pensada, experimentada, dolorida, apavorante e também, lírica. O livro é de uma pessoa que tem a ousadia de procurar si mesma; de experimentar o “antes do pensar” como um sofrido prelúdio para encontrar a Palavra. A gente sofre quando se encontra no vazio, mas é a experiência do nada, da ausência, que antecipa a criação. Um parto não é o ato de parir: um parto faz parte de uma sinfonia que já vinha sendo tocada, em vários movimentos, para culminar no grito final – o nascimento de uma obra a se fazer. É isso que Clarice nos faz sentir. Autonomia, liberdade, ousadia, coragem, desprendimento, vontade de sair da casca da mesmice, desejo de explodir como uma cesura que faz romper com o conhecido, o antes estabelecido. E tudo isso é esteticamente belo e atemorizante da escrita de Clarice.
Ninguém ler Clarice consumindo a leitura; ninguém é mais o mesmo após seus questionamentos e insights; ninguém consegue a calma com a leitura experimentada emocionalmente de Clarice. Clarice sempre criou na “calma do desespero”. Clarice, assim como os grandes escritores, soube conhecer o “Inferno”, e dele tirar proveito, criando uma obra insaturada, sempre viva, “água viva”. 
Cito um momento de alumbramento para mim, nesse livro de Clarice. Um momento em que somos levados a pensar que antes da palavra, do pensamento e talvez da poesia existia a música. Clarice se coloca num estado de oniróide para ir buscar a música maior. Deixo a autora descrever: “Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo. Quero morrer com vida. Juro que só morrerei lucrando o último instante”.
Clarice é “água viva”. Termina seu livro nos dizendo que: “tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas”.

Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London

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