Fim do mundo, novo mundo
Por Fernando Gabeira
… Foi graças às investigações e sólidas provas da Lava Jato que a imprensa conseguiu avançar, contribuindo com seu esforço para desvendar a engrenagem que sufocava o Brasil. O interessante é a crítica pendular que ela sofre…
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO, "OPINIÃO", E NO SITE OFICIAL DE FERNANDO GABEIRA, WWW.GABEIRA.COM.BR, 21 de abril de 2017
A delação dos dirigentes da Odebrecht não trouxe tantas novidades para quem leu os vazamentos. No entanto, a forma como se apresentou – vídeos dos delatores, riqueza de detalhes e algumas surpresas – trouxe grande impacto mesmo para os que conheciam os dados principais da trama.
Para começar, alguns obstáculos técnicos: as denúncias não foram hierarquizadas e divididas em blocos. E o áudio das delações era bastante sofrível. Aliás, a qualidade do áudio é uma crítica que faço não apenas à Lava Jato. Parece que vivemos numa era pré-estereofônica, na contramão de uma tecnologia cada vez mais acessível.
Percebo à distância que grandes peixes passaram quase em branco, como o negócio dos submarinos com a França. Aliás, dos 200 depoimentos ainda em sigilo, quase todos tratam de aventuras internacionais e da participação do BNDES, algo que me interessa na proporção em que se esforçam para escondê-los. Nesse oceano de informações, algumas dolorosas, porque trazem também decepção sobre certas pessoas, escolhi uma frase de Emílio Odebrecht para comentar, aquela em que ele diz que a corrupção existe há 30 anos e ele não entende a surpresa da imprensa, que não a teria denunciado.
Reconheço que mostrar-se surpreso e ser ao mesmo tempo um observador da vida política nacional é contraditório. Só posso entender esse movimento de alguns comentaristas pelo desejo de empatia com seus leitores ou espectadores, estes, sim, sem o mesmo nível de informação, estupefatos com os bastidores das relações entre políticos e empreiteiros.
Percebo à distância que grandes peixes passaram quase em branco, como o negócio dos submarinos com a França. Aliás, dos 200 depoimentos ainda em sigilo, quase todos tratam de aventuras internacionais e da participação do BNDES, algo que me interessa na proporção em que se esforçam para escondê-los...
Não é verdade que o sistema de corrupção, ao longo dos anos de redemocratização, não tenha sido denunciado. A própria Odebrecht confirma isso ao confessar que sofisticou o processo depois da CPI dos Anões do Orçamento. O jornalista Jânio de Freitas foi um pioneiro ao desmascarar licitações fraudadas na Ferrovia Norte-Sul. Grandes operações da Polícia Federal, como a Castelo de Areia, morreram na praia porque a Justiça anulou as provas, algo que o ministro Gilmar Mendes chegou a sugerir para a Lava Jato.
O que a CPI não tinha nem a imprensa conseguiu foi o detalhe revelado agora pela delação: num dos maços de notas destinados a comprar o dossiê contra Serra havia uma etiqueta de uma empresa da cervejaria Itaipava. No contexto atual, o caso seria esclarecido a partir desse detalhe, desprezado nas investigações…
E posso me concentrar num episódio que conheço bem, para contestar parcialmente a fala de Emílio Odebrecht. Refiro-me ao caso que ficou conhecido, graças à esperteza de Lula, como o dos aloprados do PT. É a história dos petistas detidos com R$ 1,6 milhão em dinheiro, nas eleições de 2006. Eu era o relator da CPI dos Sanguessugas incumbido desse caso.
Ele tinha relação com a CPI porque José Serra, supostamente, seria denunciado pelos principais acusados de superfaturar ambulâncias.
Tentei desvendá-lo ouvindo depoimentos, era o instrumento que tinha. Os petistas estavam eufóricos com a reeleição de Lula. Não davam pistas.
A imprensa trabalhou muito. Dois repórteres da Veja chegaram a ser detidos na Polícia Federal de São Paulo. O então diretor da revista, Mário Sabino, foi indiciado por tentar informar os seus leitores.
O que a CPI não tinha nem a imprensa conseguiu foi o detalhe revelado agora pela delação: num dos maços de notas destinados a comprar o dossiê contra Serra havia uma etiqueta de uma empresa da cervejaria Itaipava. No contexto atual, o caso seria esclarecido a partir desse detalhe, desprezado nas investigações.
Não quero afirmar que a imprensa tenha sido uma combatente heroica da corrupção, sobretudo porque sob esse conceito mais geral há comportamentos muito distintos. Quero afirmar apenas suas limitações. Ela não pode quebrar sigilos bancários e telefônicos, muito menos realizar entrevistas seguidas de condução coercitiva.
O que mudou essencialmente o quadro foi a eficácia da Lava Jato. Ela evitou todas as armadilhas em que caíram as operações derrotadas pelo poderoso sistema de corrupção.
Foi graças às investigações e sólidas provas da Lava Jato que a imprensa conseguiu avançar, contribuindo com seu esforço para desvendar a engrenagem que sufocava o Brasil. O interessante é a crítica pendular que ela sofre. Quase sempre foi acusada de inventar denúncias. Recentemente, o PT qualificava os escândalos que o envolvem como uma “conspiração midiática”. Emílio Odebrecht a acusa-a de ter silenciado ao longo dos anos e fazer agora um grande estardalhaço. Mas a verdade é o quanto tanto a PF como os procuradores evoluíram com o tempo e com os fracassos relativos. E a própria imprensa se tornou mais cautelosa ao se mover em terreno tão delicado.
Alguns fatores tornaram a corrupção conhecida de quem observava friamente o processo, mais vulnerável que no passado. Um desses fatores é a maior transparência impulsionada também pela revolução digital…
Alguns dos mais importantes vazamentos foram em blogs, que têm uma estrutura mais leve e, por causa disso, ousam mais. O que Emílio Odebrecht não considerou em sua fala foram os enormes avanços havidos no Brasil, enquanto empreiteiras e políticos vivam num mundo à parte.
A experiência de vida mostra que muitas coisas que eram proibidas no passado passam a ser permitidas com o tempo, como, por exemplo, o divórcio e a união de gays. Mas história é mais complicada. Muitas coisas, antes toleradas, passam a ser proibidas com o tempo, como o assédio sexual por exemplo.
Alguns fatores tornaram a corrupção conhecida de quem observava friamente o processo, mais vulnerável que no passado. Um desses fatores é a maior transparência impulsionada também pela revolução digital. Outro aspecto importante, talvez inspirado pela Justiça americana, é a tática de rastreamento do dinheiro de propinas através dos labirintos do sistema financeiro internacional.
Finalmente, certas mudanças de atitude, como a da Suíça, foram fundamentais. A Suíça se abriu, a polícia brasileira mudou, a tolerância das pessoas comuns mudou, foram tantas mudanças que é bastante compreensível que a bolha tenha estourado agora, e não antes, apesar de inúmeras tentativas frustradas.
Mesmo sem me importar com os risos pragmáticos, diria que Emílio poderia aprender com o escândalo uma lição mais valiosa que sua fortuna: a impermanência de tudo, o constante processo de mudanças.
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Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na Globo News, onde produz semanalmente reportagens sobre temas especiais, por ele próprio filmadas (no ar aos domingos, 18h30, e em reprises na programação). Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve aos domingos.