domingo, 17 de fevereiro de 2013

Esculhambação



DE SÃO PAULO

A tragédia de Santa Maria impactou o país pela quantidade de mortes que ocasionou mas também pelo que significa no quadro da realidade brasileira: a denúncia da irresponsabilidade que tomou conta do país.
Que, no Brasil de hoje, as leis, as normas sociais estão aí apenas para constar, a gente já sabia. Mas foi preciso, desgraçadamente, que o incêndio da boate Kiss resultasse na morte de quase 240 pessoas --na sua maioria jovens universitários-- para que as autoridades se mancassem e se sentissem obrigadas a fazer o que mais as desagrada: fazer cumprir as leis e, pior ainda, punir quem as desrespeita. Na verdade, querem ser todos bonzinhos, especialmente consigo mesmos.
A tragédia de Santa Maria tornou de repente inviável essa cômoda atitude. A postura usual dos governantes e das autoridades é a de não admitir os seus próprios erros, atribuindo-os a injúrias ou mentiras inventadas pela imprensa.
Mas, desta vez, diante de centenas de cadáveres amontoados na rua e dos parentes soluçando em desespero, o que fazer? Dizer que se tratava de uma invenção da mídia não podiam. Tiveram, eles próprios, que mentir.
O prefeito de Santa Maria não sabia nada do que se passava naquela boate.
Já o comandante do Corpo de Bombeiros da cidade afirmou, com firmeza, que, legalmente, bastava uma única porta numa casa de shows onde se divertiam mais de mil pessoas, embora a lotação legal fosse de apenas 650 frequentadores. Os extintores de incêndio não funcionavam, como ficou provado pela perícia, mas ele alegou que estavam em perfeito estado e, se não funcionaram, teria sido pela imperícia de quem tentou manejá-los.
Noutras palavras, embora o Corpo de Bombeiros tenha permitido que a boate funcionasse sem obedecer a quaisquer exigências legais, nenhuma culpa tem pelo que ali ocorreu.
Indignei-me ao ouvi-lo mas tampouco esperava que ele dissesse outra coisa, uma vez que, se tanta gente morreu naquele incêndio, a razão disso não é outra senão a desobediência a toda e qualquer norma de segurança. E por que isso ocorre? Por negligência? Por receberem propina? Por obedecerem a recomendações superiores? Ninguém sabe ao certo. O que se sabe é que este nosso Brasil é hoje uma pura e simples esculhambação.
Veja se exagero. Como a boate pegou fogo mesmo e 239 pessoas morreram mesmo; como a boate só tinha uma porta e os extintores de incêndio não funcionavam, ninguém pode, desta vez, alegar que se trata de uma calúnia. É inegável que o desastre ocorreu porque as autoridades responsáveis foram omissas. Mas, em seguida, diante da tragédia e da omissão comprovada, todas elas, imediatamente, passaram a agir com a presteza e o rigor que nunca tiveram antes.
O resultado não poderia ser outro: em todos os Estados e cidades, onde a fiscalização foi acionada, centenas de casas noturnas ou não apresentavam as condições de segurança exigidas ou estavam com a licença de funcionamento vencida. Isso significa que os proprietários e responsáveis por esses espaços vêm durante anos pondo em risco a vida dos frequentadores, como se isso se tratasse da coisa mais normal do mundo. Até uma borracharia funcionava como boate.
É que, do governador ao comandante do Corpo de Bombeiros, do chefe da fiscalização ao fiscal menos categorizado, todos usam o poder que detêm para tirar vantagens, sejam elas políticas, sejam pessoais. O interesse público é sua moeda de troca.
Pois bem, a pergunta a fazer é por que isso acontece e de maneira tão generalizada? Não tenho a resposta pronta. Mas não há dúvida de que a máquina do Estado foi apropriada por partidos e líderes políticos, que a usam em beneficio próprio, seja pessoal, seja partidário. As leis, portanto, não têm valia ou só valem quando servem a esses interesses.
É que, para eles, a opinião pública não merece nenhum respeito. Que outro sentido tem a recente eleição de Renan Calheiros para presidir o Senado Federal, embora denunciado pelo procurador-geral da República por peculato, uso de documentos falsos e corrupção?
Há cinco anos, ele renunciou a essa mesma presidência e ao seu mandato parlamentar para escapar de ser cassado. E volta, agora, sob os aplausos efusivos de seus companheiros de farsa.
É ou não é uma esculhambação?
Ferreira Gullar
Ferreira Gullar é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada".