Ele está em todos os lugares: em uma esquina do velho bairro de Almagro, nas cercanias dos trilhos de trem em San Isidro, nos muros de San Telmo, nos caminhões, na peregrinação de um quarto de milhão de pessoas em Corrientes. A Argentina tem um Papa e um santo.
Santo dos pobres, oprimidos e estátua kitsch nas lojas fashion de Palermo Soho, em Buenos Aires, o Gauchito Gil é um santo verdadeiramente argentino.
Não se admire se o ver pregado à cruz em trajes típicos, abundante cabeleira e pinta de guerrilheiro. É ele mesmo, Antonio Mamerto Gil Núñez, a figura adorada que levou mais de 200 mil argentinos esta semana, em procissão, ao seu santuário, em Corrientes.
Há versões conflitantes sobre a vida e morte do Gauchito, mas a única certeza é de que morreu no dia 08 de janeiro, no século XVIII, de morte violenta e injustamente.
Algumas dizem que era uma espécie de desertor do exército e um verdadeiro Robin Hood “criollo”. Outras contam que era um soldado que ia de conflito em conflito libertando oprimidos. Outra versão diz que Antonio teria se metido com uma mulher casada e terminado mal.
“Há tantas versões sobre sua identidade quanto número de devotos”, disse à imprensa a diretora de cinema Lia Dansker que, em 2013, realizou um documentário sobre o culto ao santo. “A submissão do povo guarani ao sofrimento está na base do mito do Gauchito, que representa rebeldia frente a este sofrimento”.
Gauchito Gil, tão pop que ganhou uma releitura do fotógrafo surrealista Marcos López
Em Buenos Aires, chega-se a afirmar que é o santo dos “chorros”, os marginais, porque sua fama se espalhou pelas “villas”, as favelas argentinas.
No âmbito rural, ele é a representação de um inconsciente de pobreza e privação. É também um retrato dos povos indígenas do país, tão perseguidos, entocados e dissonantes da “europeia” Argentina, que é como se não existissem.
Quanto à sua morte, os relatos não diferem das circunstâncias violentas nas quais outros santos conhecidos (e reconhecidos pela Igreja católica) sucumbiram: injustiça, tortura, sofrimento e perdão. Dizem que foi escalpelado e degolado, mas não antes de perdoar seu verdugo e lhe conceder um milagre.
Reza a lenda que Gauchito disse ao soldado que o matou que, na volta a casa, seu filho, que estava até então doente, estaria curado. Dito e feito. Assim, nasceu a lenda que atravessou séculos. A fama de milagreiro se espalhou e não tardou muito para que outros milagres fossem atribuídos a ele.
No dia 08 último, nem mesmo o calor seguido de uma forte tempestade impediu que milhares de pessoas peregrinassem até o local de seu assassinato. Muitos para pedir e tantos outros para agradecer. Por aqui, santo de casa faz milagre, diz-se.
Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín. Escreve aqui todos os sábados.
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