O destino foi bastante cruel com o venerando ministro Celso de Mello na reta final de sua longa trajetória no Supremo Tribunal Federal (STF), aonde chegou aos 43 anos, em julho de 1989, indicado por José Sarney. Caso não antecipe a sua aposentadoria, deixa a corte em novembro de 2015, quando completa setenta anos. Ao longo desse tempo, as mais variadas correntes de opinião, com visões as mais distintas, souberam apreciar a sua retidão, o seu caráter, a sua seriedade. Jamais se furtou, quando achou conveniente, a dizer palavras muito duras e severas, como quando chamou os mensaleiros de “marginais do poder”. Mas sempre evitou a estridência e os holofotes. Discordei dele neste espaço mais de uma vez. Critiquei duramente, por exemplo, o seu voto em favor da liberação das tais “marchas da maconha”. Creio que, no caso, confundiu domínios distintos, como o da liberdade de expressão e o da apologia do crime. Ainda não mudei de ideia e estou mais convencido hoje do seu erro do que antes. Nem por isso passei a respeitá-lo menos. À diferença do subjornalismo a soldo, financiado por estatais e por aliados do governo federal para atacar jornalistas, juízes e políticos da oposição, sei a diferença entre a divergência e a pura e simples desqualificação. Assim, não me divorcio do respeito que nutro por Celso de Mello, mas é preciso que diga com todas as letras e com clareza incontornável: seu voto em favor dos embargos infringentes, nesta quarta, é desastroso. E a retórica que emprestou ao voto o torna ainda mais lamentável.
Faço questão de chamar, uma vez mais, a atenção de vocês para um fato evidente. Tanto o “sim” como o “não” aos embargos infringentes encontravam respaldo legal. Estava-se diante de uma daquelas situações em que prevalece a interpretação. Não é raro que isso se dê nos tribunais. Por isso existem os juízes. Estão aí para fazer o trabalho que não pode ser executado por jornalistas, contadores, matemáticos, filósofos etc. Existem para dar realidade e consequência prática ao espírito das leis, atuando muito especialmente nas zonas intersticiais criadas ou pela ausência da letra ou pela ambiguidade gerada por letras que, na superfície ao menos, estão em conflito. Juízes, é certo, podem decidir estupidamente errado e fazer mal às sociedades, mas nada que se compare a sociedades sem juízes.
Assim, qualquer decisão de Celso de Mello poderia reivindicar o estatuto de legal. Descarte-se, pois, que os que se opunham à sua escolha, inclusive dentro do tribunal, estivessem a advogar uma saída de exceção Muito pelo contrário: se uma coisa e outra se amparavam em códigos escritos, a mim sempre pareceu — e também a muitos especialistas — que o “não” estava mais adequado ao espirito da lei. Mas o ministro escolheu fazer o contrário. O “não” abriria o caminho para que, finalmente, se pusesse fim a esse processo, que se arrasta no tribunal há seis anos — oito desde a que o escândalo do mensalão veio à luz. O “sim” de Celso de Mello, o sexto, coloca o país na vereda da incerteza, que, vejam só!, nos conduz àquilo que já somos: uma país notório por uma Justiça que é falha porque tardia e tardia porque falha. A insensatez dessa escolha se revela por qualquer ângulo que se queira, e o da lógica é o mais evidente: quatro votos divergentes, então, bastam para que um condenado tenha direito a um novo julgamento, mas cinco são inúteis para impedir que ele se realize? Um oponente poderia redarguir: “Mas a maioria quis o contrário”. E não foi, por acaso, a maioria que condenou os réus que agora terão direito a um novo julgamento?
Não é raro que sejamos confrontados, na vida pessoal e profissional, com situações em que somos forçados a escolher entre alternativas que não encerram, em si, o ótimo. Os grandes dilemas éticos, diga-se, sempre estão nessa categoria. A resposta nunca é óbvia ou insuscetível de dúvidas. Nesse caso, parece-me, cumpre convocar a moral pessoal para que seja ela a decidir. Entendo que, em situações assim, a escolha há de recair sobre o mal menor. A despeito de eventuais simpatias e afinidades por este ou por aquele, é bem possível que, ao celebrar um acordo com Hitler, em 1938, Chamberlain e Daladier estivessem pensando em evitar a guerra — decidiram, pois, entre duas alternativas ruins. Mas escolheram o mal maior, o que não escapou aos olhos argutos de um certo Churchill: “Entre a desonra e a guerra, escolheram a desonra e terão a guerra”.
Celso de Mello é um juiz, não uma máquina de recitar dispositivos legais. Estou certo de que pesaram em sua escolha o ambiente político, a campanha de desmoralização do Supremo que se seguiria à eventual rejeição dos embargos, as tentativas — que seriam inúteis — de apelar à Corte Interamericana etc. Assim, entre o trabalho de satanização do STF e os embargos infringentes, Mello escolheu os infringentes e terá… a satanização do STF. Ou vocês acham que o PT dará uma trégua aos ministros? Não há a menor possibilidade de que isso aconteça. Doravante, vai se exigir cada vez mais da Casa, até porque, como escrevi há tempos, o “mal” já se insinuou, já fincou bandeira no tribunal. A que “mal” me refiro? A algum ente de outro mundo? Não! Falo é de duendes deste mundo mesmo. Interesses ideológicos e escancaradamente político-partidários sentaram praça na mais alta corte do país.
Mello toma a decisão errada no momento em que o tribunal sofre um assédio como nunca se viu. A ditadura aposentou ministros à força, por conta de atos discricionários. O petismo quer calar todo o tribunal, esteriliza-lo, transformando-o em merca corrente de transmissão dos interesses partidários. E há vozes lá dentro a dizer inconveniências incompatíveis com aquele ambiente e com as atribuições do Judiciário. Ricardo Lewandowski acusa seus pares de atuação deliberada para prender um dos condenados. Roberto Barroso não tem pejo de fazer um repto em favor de um outro, nada menos do que presidente do partido à época em que se deu consequência à velha tentação de tomar de assalto o poder. Dias Toffoli, ex-subordinado daquele que foi considerado o chefe da quadrilha, não viu por que se declarar impedido — e, ainda que quisesse, sabe que não teria como fazê-lo.
O ministro diz “sim” aos infringentes quando está em curso uma campanha de heroicização dos criminosos e de criminalização dos ministros do Supremo que ousaram não fazer as vontades dos poderosos de turno. Planejam-se fazer filmes, com dinheiro público (o mesmo usado na tentativa de assalto ao Estado), em que os “marginais” do poder atuarão como cavaleiros impolutos da ética, lutando contra os homens maus do Supremo, que tiveram o topete de condená-los. Celso de Mello sabe muito bem que ninguém estava a lhe cobrar que ignorasse a lei. Ao contrário: o que se pedia é que ela fosse cumprida segundo o caminho virtuoso. O fato é que, infelizmente, ainda que por intenções virtuosas, ele escolheu o caminho vicioso.
Todo o estrondo que se ouviu nas ruas em junho, mal interpretado, acho eu, pelos virtuosos e a tempo manipulado pelos viciosos, transformou-se não mais do que num suspiro nestes dias em que o STF decidia os rumos do processo do mensalão. As ruas se calaram. O Sete de Setembro ficou entregue aos vândalos, a fascistoides depredadores da ordem, a hordas que, ficou claro, odeiam mais a imprensa livre do que os ladrões do dinheiro público. Não sei se a reversão das expectativas de muita gente que tem sede de justiça resultará em nova onda de indignação. Não creio. O mais provável é que, à decisão de Celso se Mello, se siga um clamor silencioso, frio, passivo, abúlico até. Os que tinham a desconfiança de que, no fim das contas, como cansei de ouvir, “isso não daria em nada” verão confirmadas sua expectativa triste. Como anteviu o mago petista Delúbio Soares, um dia se falaria desse crime como “piada de salão”, não é mesmo? Acho que Celso de Mello contribuiu, querendo ou não, para fazer de Delúbio um visionário.
Agora, qualquer coisa pode acontecer — e é grande a chance de que não aconteça nada. Um novo julgamento é um novo julgamento. Ele implica, necessariamente, a mudança de resultado do que foi definido no primeiro? Não é fatal, mas é o mais provável. Ou vamos esquecer que Teori Zavascki, com o luxuoso auxílio de Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, tentou usar os embargos de declaração para rever a pena de José Dirceu e de outros heróis da pátria? O mínimo que se vai tentar e livrar o chefão petista e amigos do crime de formação de quadrilha — ou diminuir-lhes drasticamente a pena. Os quatro que inocentaram Dirceu nesse caso não têm por que mudar de ideia. A decisão ficará com os dois mais novos ministros da corte.
A decisão errada e imprudente de um virtuoso torna céticos os decentes e ainda mais cínicos os viciosos. A Justiça vai a pique pelas mãos de seu mais ilustre e experiente timoneiro.
Finalmente, lastimo a retórica a que recorreu na introdução de seu voto, em que opôs o direito, sede da morada da racionalidade, à voz do povo, movido por paixões irracionais. Que um voto como esse, com essa abordagem, sirva para proteger, na prática, os malfeitores petistas.