Por Revista Época
No livro 1984, o escritor britânico George Orwell retrata a vida num regime totalitário, controlado por um partido único - uma alusão à antiga União Soviética nos tempos de Josef Stálin, o ditador sanguinário responsável pela morte de milhões de pessoas. Por meio de grandes telas, que funcionam ao mesmo tempo como aparelhos de televisão e câmeras de vigilância, o “Big Brother” (o Grande Irmão) observa dia e noite os indivíduos e persegue os que se desviam do comportamento esperado pelo governo. No livro, Orwell traduz, com uma frase simbólica, a dominação exercida pelo regime sobre a sociedade: “No final, o Partido anunciaria que dois mais dois é igual a cinco, e você teria de acreditar”.
Hoje, depois da queda do império soviético, parece improvável que o sistema político imaginado por Orwell possa se transformar em realidade. Mas a ideia de que é possível levar os indivíduos a acreditar que a soma de dois mais dois não é igual a quatro contínua a inspirar políticos de todos os naipes e burocratas de Estado mundo afora - inclusive no Brasil. Apesar de o país viver o mais longo e estável ciclo democrático de sua história, a divulgação de versões que parecem desafiar a lógica (e a inteligência dos cidadãos), para explicar fatos incômodos ao governo e às autoridades, tornou-se uma prática trivial.
O melhor exemplo do abismo que separa o mundo real das versões idílicas produzidas nos gabinetes de Brasília é o que acontece hoje com as contas públicas. Contra todas as evidências, que revelam um desequilíbrio crescente no Orçamento e o aumento da dívida pública, o governo afirma e reafirma, com o apoio discreto do Banco Central, que não há nada de errado e está tudo sob controle. Em vez de admitir de forma transparente que gasta “de mais” e poupa “de menos”, o governo vem recorrendo nos últimos anos a uma série de truques contábeis para exibir equilíbrio em suas contas. Esse conjunto de manobras foi apelidado jocosamente pelos financistas como “contabilidade criativa”. “Não sei o que é contabilidade criativa’, não sei do que você está falando”, disse a ÉPOCA o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, apontado como o “pai” das alquimias fiscais (leia sua entrevista na pág. 56). “Nossa conduta fiscal é exemplar e inquestionável”, afirma o ministro da Fazenda, Guido Mantega.
Embora negadas por Brasília, há quase um consenso entre os economistas e analistas de mercado, do Brasil e do exterior, de que essas manobras retocam as contas públicas para torná-las mais bonitas na fotografia do que elas são. É como se o governo usasse o Photoshop, o programa de computador que permite retocar fotos, para transformar as contas públicas numa modelo esbelta como Gisele Bündchen, embora estejam cada vez mais parecidas com a Madame Min, a bruxa criada por Walt Disney. Segundo a consultoria econômica Tendências, as manobras contábeis do governo somaram cerca de R$ 600 bilhões entre 2009 e 2012, o equivalente a 25 vezes o custo do Bolsa Família em 2013.
“De uns tempos para cá, o governo adotou uma série de medidas atípicas, em vez de reconhecer que não cumpriria a meta fiscal, porque a economia não estava reagindo bem”, diz o economista José Roberto Afonso, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), coautor de um estudo sobre o tema publicado recentemente. “O Brasil está fazendo com as contas fiscais o mesmo que a Argentina faz ao manipular índices de inflação”, afirma o economista Gustavo Franco, ligado ao PSDB, ex-presidente do Banco Central e hoje sócio da Rio Bravo Investimentos.
O governo Dilma não é o primeiro, nem será o último, a recorrer a alquimias para dourar a contabilidade oficial. Mas nunca antes na história deste país acontecera algo semelhante em termos de magnitude. Dentro do governo, as divergências sobre o uso de alquimias contábeis provocaram a queda do ex-secretário executivo do Ministério da Fazenda Nelson Barbosa, que deixou o posto em junho. Mesmo economistas simpáticos ao governo criticam a contabilidade criativa e a deterioração nas contas públicas. “A quebra da seriedade da política econômica produzida por tais alquimias acabará matando os próprios alquimistas pela inalação dos gases venenosos que, todos sabemos, elas mesmas emitem”, escreveu o ex-ministro Antonio Delfim Netto, um ex-usuário de truques contábeis quando estava no comando da economia, durante o regime militar. “É tentador fazer maquiagem para não passar pelo desgaste político de mudar a meta, mas é melhor não maquiar”, afirma Júlio Sérgio Gomes de Almeida, secretário de Política Econômica no governo Lula.
Duas das principais empresas internacionais de classificação de risco, as americanas Standard & Poor’s e Moody’s, colocaram o Brasil em observação e ameaçam rebaixar a nota brasileira, se o país não controlar suas contas. “No que se refere ao comportamento dos mercados, o Brasil já foi rebaixado”, diz o ex-diretor do Banco Central Mario Mesquita. Segundo ele, o risco Brasil, que costumava ficar 10 pontos acima do risco do México em 2011 e 2012, atingiu 80 pontos a mais em agosto e, agora, está 50 pontos acima. No final de outubro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) engrossaram o coro sobre a piora das contas públicas. “O governo está com um problema muito sério, porque todos os relatórios estão num tom crítico, alertando para o crescimento da dívida pública”, afirma o economista Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Com a multiplicação dos malabarismos oficiais, muitos economistas passaram a fazer uma apuração paralela das contas públicas, expurgando de seus índices os truques contábeis. Nessa contabilidade paralela, chegam a um resultado diferente para o “superavit primário” - indicador que mostra a poupança feita pelo governo para pagar os juros da dívida pública. Até pouco tempo atrás, o superavit primário representava um termômetro respeitado para medir a solidez das finanças públicas. Depois de o Ministério da Fazenda recorrer diversas vezes à contabilidade criativa para mostrar que cumprira a meta de poupança, a confiança no superavit medido pelo governo diminuiu muito. “Você pode até dizer que não fará o superavit previsto, mas não pode mexer nas regras do jogo. Foi isso que o governo fez”, diz José Roberto Afonso. “O governo faria melhor se fixasse uma meta diferente, em vez de recorrer à contabilidade criativa para tentar cumprir de qualquer forma a meta original”, afirma o economista Samuel Pessoa, também pesquisador do Ibre.
Em 2013, até setembro, o superavit primário “expurgado” está em 0,6% do PIB, ante o 1,6% anunciado pelo governo, de acordo com um estudo do economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central e ex-economista-chefe do banco Santander (leia o gráfico à esq.). “Ninguém é burro. Com a contabilidade criativa em alta nos últimos anos, é necessário exorcizar o balanço fiscal de seres imaginários”, diz ele.
Os truques do governo são variados. Do adiamento de pagamentos de fornecedores ao recebimento antecipado de dividendos de empresas e bancos estatais; do parcelamento de dívidas com o governo à multiplicação de receitas extraordinárias, que só acontecem uma vez, como os R$ 15 bilhões recebidos das empresas que venceram o leilão do campo de Libra, no pré-sal, vale praticamente tudo na contabilidade criativa (leia o quadro na pág. 38). Os maiores malabarismos foram feitos a partir do que Delfim Netto chama de “relação incestuosa” entre o Tesouro Nacional, a Petrobras, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Caixa Econômica Federal.
Uma das operações a que Delfim se refere é a operação triangular montada pelo governo com os bancos públicos. Por meio dela, o Tesouro emite títulos públicos e aumenta a dívida bruta, que inclui todas as pendências financeiras da União. Depois, repassa os papéis para os bancos federais, como BNDES e Caixa, por prazos a perder de vista, para eles turbinarem os empréstimos aos clientes. Em seguida, essa dívida nova do governo volta para o caixa oficial e se transforma, milagrosamente, em receita, por meio do pagamento de dividendos do BNDES ao Tesouro. Esses empréstimos feitos aos bancos públicos alcançaram R$ 440 bilhões desde 2009. Recentemente, Mantega disse que, ainda em 2013, o Tesouro emprestará mais R$ 22 bilhões ao BNDES, que provavelmente pagará gordos dividendos mais uma vez ao governo, com o dinheiro de sua própria dívida pública.
Ao mesmo tempo, os dividendos pagos ao Tesouro pelos bancos e empresas estatais deram um salto. De 2009 a 2012, representaram 0,6% do PIB ao ano, o equivalente a R$ 26,4 bilhões, metade dos quais pago antecipadamente ao Tesouro a pedido do governo. Entre 2001 e 2005, os dividendos recebidos pela União ficaram na faixa de 0,2% ao ano do PIB. De 2006 a 2008, em 0,37%. Floje, em vez de a maior parte desses dividendos sair da Eletrobras e da Petrobras, como acontecia antes, eles vêm do BNDES e da Caixa Econômica Federal. Como os dois bancos são 100% controlados pelo governo e não têm acionistas privados, não é preciso dividir os dividendos com ninguém, ao contrário do que ocorre na Petrobras e Eletrobras, que têm ações cotadas na Bolsa de Valores e milhares de acionistas minoritários. “O BNDES pode gerar lucro, mas não um lucro artificial, para dar receita para o governo gastar com pessoal”, diz o economista Raul Velloso, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento.
Ainda assim, o governo perde dinheiro com essas operações. Como o BNDES cobra da clientela juros de 5% ao ano, e o governo paga juros bem mais altos, de quase 10% ao ano aos investidores que compram seus papéis, há um subsídio aos tomadores de crédito do banco -não incluído no Orçamento da União e isento de aprovação pelo Congresso Nacional. “A insistência na clareza e na necessidade de que qualquer subsídio -uma transferência de renda - deve estar no orçamento decorre do princípio de transparência, que deve caracterizar o exercício das políticas nas sociedades republicanas e democráticas: todos devem saber quem recebe e quem paga o benefício”, diz Delfim. Além disso, o repasse feito ao BNDES, embora seja somado na dívida bruta do setor público, não entra no cálculo da dívida líquida, que vem sendo usada como peça de propaganda do governo para alardear equilíbrio em suas contas.
Muitos economistas veem nessas operações entre Tesouro e BNDES uma reedição da extinta conta movimento, mecanismo pelo qual o Banco Central alimentava o Banco do Brasil com recursos, para ele expandir empréstimos em programas de interesse do governo, sem que constassem do Orçamento da União. “Nada contra o Tesouro receber dividendos de estatais, mas percebe-se que ele força a barra para ampliar essas receitas, com danos para as próprias empresas que os geram. Tudo é feito numa escala maior que no passado”, afirma o economista Roberto Macedo, secretário de Política Econômica do governo Collor.
Outra manobra contábil extravagante ocorreu na capitalização da Petrobras, em 2010. Naquele ano, o superavit recorde do Tesouro, de R$ 26 bilhões, foi alcançado por causa da antecipação de receitas pagas pela Petrobras ao governo, com base na exploração futura de 5 bilhões de barris de petróleo. Dos R$ 75 bilhões pagos pela Petrobras, R$ 43 bilhões foram usados para comprar ações da própria empresa em oferta pública, com o objetivo de aumentar a fatia do Estado no seu capital de 40% para 48% do total. A diferença, de R$ 32 bilhões, ajudou a compor o superavzf primário do governo. Sem esse aporte, pelos cálculos de Schwartsman, o governo teria fechado as contas com um déficit de R$ 6 bilhões, apesar do crescimento excepcional da arrecadação federal naquele ano, puxada pelo crescimento de 7,5% da economia.
Segundo Gustavo Franco, há duas camadas de dívidas que não estão claras na contabilidade oficial e merecem atenção. A primeira são as dívidas não reconhecidas dos prejuízos causados à Petrobras, à Eletrobras e aos acionistas minoritários pelo uso das duas empresas como instrumento de política econômica. No passado, de acordo com Franco, quando isso ocorria, a diferença era coberta pelo Tesouro por meio da conta petróleo - relativa às pendências com a Petrobras - e pela conta de resultados a compensar (CRC) - relativa às pendências com a Eletrobras. Ele menciona também obrigações futuras, não contadas como dívida, como as previdenciárias, que deverão consumir uma boa parcela do PIB em alguns anos. “Há várias formas pelas quais o Tesouro assume o ônus da redução artificial do preço da energia, mas o custo não é explicado, nem entra no cálculo da dívida bruta”, diz Franco.
Mesmo sem contar de forma transparente vários “esqueletos” escondidos nos desvãos dos balanços oficiais, a dívida bruta do setor público, que engloba todas as dívidas da União, Estados e municípios, teve um aumento significativo no atual governo. Desde a posse de Dilma, em janeiro de 2011, a dívida bruta cresceu de 65% para 68,3% do PIB, o equivalente a R$ 170 bilhões, segundo os critérios do FMI. Pelos critérios adotados pelo Brasil, que expurga da dívida bruta algumas operações do Banco Central com títulos públicos, o endividamento também cresceu, de 53,4% para 58,8% do PIB. Pelas duas metodologias, a dívida total do setor público está bem acima da média dos países emergentes, de 35% do PIB. “Há um desconforto com a relação da dívida bruta em relação ao PIB não só pelo seu tamanho, mas pelas perspectivas de seu crescimento”, afirma Delfim.
Em boa medida, a deterioração nas contas públicas a partir de 2009 tem a ver com a política econômica praticada pelo próprio governo. Desde a gestão de Lula, o governo parece ter apostado num aumento ininterrupto da arrecadação, puxado pelo crescimento da economia, para fazer frente a despesas fixas cada vez maiores. Só que, apesar de todas as medidas tomadas para estimular a economia, o crescimento não decolou. As receitas não aumentaram como se esperava, e os gastos subiram em ritmo acelerado. No governo Dilma, as despesas do governo acumularam um crescimento de 2,3 pontos percentuais do PIB, para 19,7% do PIB, praticamente a mesma expansão dos governos FHC e Lula somados. Como a arrecadação cresceu bem menos e ainda houve um corte seletivo de impostos, incapaz de alavancar o crescimento, os gastos passaram a pesar mais, em termos relativos. “O gasto público brasileiro cresce muito rápido, cerca de 8% reais ao ano. De uns anos para cá, a receita parou de crescer na mesma proporção”, afirma Samuel Pessoa. “Durante o governo Lula, houve um período em que a receita crescia mais do que isso. Foi então possível aumentar as despesas de custeio numa proporção elevada e ainda ter um superavit primário alto, mas esse momento acabou.”
A questão é ainda mais problemática, porque os gastos não cresceram por causa do aumento do investimento público, mas pelo salto nas despesas de custeio da máquina administrativa, como salários do funcionalismo e benefícios dos aposentados. “O governo se tornou um grande gestor de folha de pagamentos”, diz Raul Velloso.Em 2013, houve até queda nominal no investimento público federal. Ao mesmo tempo, as receitas diminuíram em quase R$ 60 bilhões, com a concessão de benesses tributárias a setores da economia e a desaceleração da arrecadação, afetada pelo ritmo lento do crescimento. “Eles tinham convicção de que daria certo, mas não deu. E, quando uma coisa dá errado e você tenta corrigir com outra medida, a coisa vira uma bola de neve e fica difícil corrigir”, afirma Mansueto de Almeida. “O governo está aprendendo, mas a um custo alto e de forma muito vagarosa.”
O governo também abriu a porteira para o aumento do endividamento dos Estados e municípios, ao negociar a mudança do indexador de suas dívidas com a União. A medida, que tem efeito retroativo a 1998, põe em xeque a Lei de Responsabilidade Fiscal e a própria estabilidade econômica, que depende do controle dos gastos públicos para ser sustentável. “A preocupação fiscal não pode ser relaxada porque os interesses são avassaladores”, diz Gustavo Franco. “O relaxamento dos últimos anos fez aparecer o que de pior existe no setor público. Foi isso que gerou a hiperinflação. É com esses animais que estamos brincando.” Somada a isso a complacência do governo com a aprovação do “orçamento impositivo” no Congresso, pelo qual a União será obrigada a executar as emendas de parlamentares para o Orçamento anual, o perigo de ruína das finanças públicas cresce ainda mais. “A proposta do orçamento impositivo’ esconde um enorme perigo, uma vez que 90% das despesas já são impositivas”, afirma Delfim.
Com a aproximação das eleições de 2014, é difícil imaginar que o governo adote uma política de maior austeridade para controlar suas contas e deixe de recorrer a alquimias contábeis para fechar suas contas e cumprir suas metas. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, hoje sócio da Gávea Investimentos, diz que, para atacar o problema, não é necessário buscar nenhuma solução mágica. “É um certo feijão com arroz que precisa ser posto em prática”, afirma. Embora possa ser a solução mais adequada, parece uma saída incompatível para um governo empenhado em conquistar a reeleição. Isso significa que a melhoria no quadro fiscal só deverá ocorrer em 2015, no próximo mandato presidencial. Quem quer que seja presidente herdará um quadro complexo das finanças públicas - e é provável que isso ocupe um espaço relevante na campanha eleitoral, com outros temas econômicos, como a inflação e a volta do crescimento.
Artigo publicado pela revista Época em 11 de Novembro de 2013.