quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Cartas de Nova Iorque: Mas Lembranças do Missouri

Blog do Noblat

Luisa Leme 
Moro em Nova Iorque há quatro anos, mas essa semana é impossível esquecer a primeira parada nos Estados Unidos: Saint Louis, Missouri. A cidade é espalhada, meio vazia porque a população fica escondida, cada grupo em seu bairro, com 300 mil pessoas nos limites municipais e quase três milhões na região metropolitana.
O Missouri está quase que no meio do nada, com um céu interminável - propício para quem quer pensar na vida, como eu queria naquele tempo. E tem pessoas com pouco conhecimento sobre o que existe fora dos Estados Unidos.
A cidade me tratou muitíssimo bem, não me leve a mal. Eu tenho grandes amigos lá até hoje e volto para visitar de vez em quando.
Mas o que acontece em Ferguson hoje está plantado na sociedade que vive ali há muito tempo. Uma violência presente em quase todo país, um preconceito racial escancarado, e um problema com a polícia militar que extrapola questões locais e está também presente no Brasil, não é?
As comunidades como a de Ferguson no Missouri não são isoladas voluntariamente como as manchetes nos jornais dizem.
Os bairros mais pobres e a periferia que fica no lado leste da cidade, em East St. Louis, parte de Illinois (98% negra), têm mais da metade da população abaixo do nível de pobreza do governo federal.
A pobreza e violência são tão grandes por lá que a orientação para quem chega na cidade é que se você se perder, deve dirigir até achar um milharal, para garantir que está seguro.
Quem é pobre e negro em St. Louis não frequenta as mesmas universidades ou os mesmos bairros, não convive com pessoas privilegiadas, não faz amizades com gente do subúrbio. St. Louis respira tensão racial diariamente.
A segregação existe e é reforçada pela polícia, pela geografia, pela cultura local.
Subúrbios recusam projetos de transporte público como o metrô por causa da “criminalidade” e comunidades negras recusam projetos com medo de não ter onde morar se “melhorarem” o bairro.
Após a eleição presidencial de 2008, quando eu presenciei afro-americanos chorando de alegria na rua com o resultado, mudaram o nome da avenida Delmar (que divide a zona norte da cidade, majoritariamente afro-americana) para Barack Obama Avenue. Mas a cidade continua a honrar o fórum histórico em seu centro, onde os escravos eram vendidos para trabalhar nas fazendas da região até 1860.
Hoje, imigrantes precisam apresentar uma carta timbrada e formal do chefe para comprovar que estão no estado legalmente e somente este documento garante o seu direito de ter documentação local, como uma carteira de motorista.
E por isso, Michael Brown é quase como o Amarildo dos Estados Unidos. A vida dele não vale muito no Missouri. Acabou vítima de uma guarda civil desnecessariamente armada, e um país que perde toda vez que não enxerga a sua própria cor.

Luisa Leme é jornalista e produtora de documentários. Passou pela TV Cultura e TV Globo em São Paulo, e pelas Nações Unidas em Nova York. Mora nos Estados Unidos há sete anos e fez mestrado em relações internacionais na Washington University in St. Louis. Escreve aqui sempre às quintas-feirasMantém o blog DoubleLNYC com imagens e impressões sobre Nova York. Twitter: @luisaleme

POEMA DA NOITE Pálido céu abissal, por Carlito Azevedo


que não nos protege,
é antes cúmplice, ou mentor
intelectual dessas ruínas,
de nossas mentes estropiadas.
Ao passar por certas casas e ruas
suburbanas, ocorre às vezes
de nos depararmos com algo
que brilha deslumbrante e dissimétrico,
e nos comove a ponto de nos
perguntarmos se de sua aparição
escandalosa, sua cauda
luminosa de átomos e vazio,
poderão surgir algum dia
moças asseadas em vestidos
de flores, conduzindo pela
mão crianças bem penteadas
para a Escola Municipal,
o Sonho Municipal.
Parei um dia em uma dessas
praças e, deitado sobre a 
grama, me pus a escutar a
desconexão absoluta de
todas as falas do mundo, de
todos os sonhos do mundo.
Ao levantar-me para buscar
um pouco de água no tanque
vazio vi (me encarava)
uma ratazana que ainda
assim me lembrou
Debra Wingers
abandonada no deserto.

Carlos Eduardo Barbosa de Azevedo, ou Carlito Azevedo (Rio de Janeiro, 4 de julho de 1961) - Além de poeta, é crítico literário e editor da revista de poesia Inimigo Rumor. Com seu livro de estreia, Collapsus linguae, ganhou o Prêmio Jabuti. Publicou também As banhistas, Sob a noite física e a antologia Sublunar, que recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimarães, da Biblioteca Nacional. Publicou recentemente Monodrama.