quinta-feira, 30 de março de 2017

O pandeiro salvo-conduto*





A caminho da Festa da Penha, João da Baiana se viu abordado por um policial de maus bofes. O código penal em vigor, datado 1890, trazia um capítulo inteiro, com seis detalhados artigos, destinados a coibir o chamado “crime de vadiagem”. Segundo a letra da lei, seria declarado vadio todo aquele sem “profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida”. A nova legislação entrara em vigor apenas dois anos após a abolição, quando milhares de negros, recém-libertos de seus senhores, não possuíam a devida qualificação profissional e, por isso, estavam à margem do mercado de trabalho. Os implicados na “Lei da Vadiagem” ficavam sujeitos à prisão por um mês e, findo o prazo, ao sair da cadeia, eram obrigados a firmar o compromisso “de tomar ocupação dentro de quinze dias”. A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada com indício de vagabundagem. Como provou possuir emprego fixo, João da Baiana não foi recolhido à delegacia. Mas, para seu desconsolo, teve apreendido o pandeiro de estimação.

Por causa disso, decidiu não acompanhar os amigos em um convescote programado para aqueles dias em Laranjeiras, na mansão do senador Pinheiro Machado. Sem seu pandeiro, não seria ninguém, imaginou João. Nada teria a fazer por lá. Na data acertada, desapareceu. Fez imensa falta, pois, tão logo soube do motivo da ausência, o líder do Partido Republicano Conservador mandou-lhe um recado. Corresse no dia seguinte ao seu gabinete, na sede do Senado, o Solar do Conde dos Arcos. O músico atendeu ao chamado e foi recebido em pleno horário de expediente parlamentar, quando o senador lhe indagou sobre onde poderia mandar encomendar um novo pandeiro para lhe dar de presente.

João da Baiana, radiante, indicou a loja Ao Cavaquinho de Ouro, especializada em instrumentos musicais. O estabelecimento funcionava na rua da Carioca, mas com o Bota-abaixo e a obras de alargamento da via tinha sido transferido para a rua da Alfândega. Diante da informação, o senador rabiscou um bilhete para João da Baiana o entregar no balcão da loja, orientando o vendedor a gravar a mensagem no corpo do melhor pandeiro à venda: “A minha admiração, João da Baiana – Senador Pinheiro Machado”.

Depois desse dia, nenhum meganha se atreveu a confiscar de novo o pandeiro do filho de Tia Perciliana. “Ainda tenho o pandeiro em casa, mas não toco mais”, diria João da Baiana em entrevista, decorridos cerca de setenta anos do episódio. O instrumento, a essa altura, estava com couro gasto, o aro de madeira remendado com esparadrapo e as platinelas oxidadas.

“É uma relíquia, um troféu”, vangloriava-se. O pandeiro de João da Baiana, oferecido por Pinheiro Machado e transformado em uma espécie de salvo-conduto, expressava toda a complexidade da convivência entre as elites sociais e os músicos populares.

*Salvo-conduto é um documento emitido por autoridades de um Estadoque permite a seu portador transitar por um determinado território. O trânsito pode ocorrer de forma livre ou sob escolta policial ou militar.

(Do livro “Uma História do Samba – as origens”, de Lira Neto)


Os personagens:


João da Baiana com o pandeiro do senador


Senador gaúcho Pinheiro Machado

Iranianos usam Brasil como forma de chegar até a Europa



Grupos cobram 20 mil euros para uma rota que inclui Irã, Turquia, Emirados, Brasil, Bolívia, Paraguai e Espanha


Jamil Chade CORRESPONDENTE / GENEBRA ,
O Estado de S. Paulo
29 Março 2017 | 12h32
GENEBRA - Investigações realizadas pela Agência de Fronteiras da Europa (Frontex) e serviços policiais espanhóis revelam que refugiados e imigrantes iranianos estão usando o território brasileiro para driblar barreiras e chegar até a Europa, principalmente para voar com passaportes falsos para aeroportos da Espanha. Os números não são revelados, já que as polícias europeias admitem que não sabem quantos conseguiram acesso a documentos falsos e não foram identificados. Mas as estimativas apontam que "dezenas" teriam usado a rota. Um grupo de pelo menos 19 pessoas foi detido em diversas cidades espanholas no segundo semestre de 2016 organizando passaportes falsificados e o roteiro sul-americano desses imigrantes. 

Foto: AP Photo/Francisco Seco
Madri, Espanha
Espanha costuma ser destino de iranianos que burlam controles para chegar à Europa 
De acordo com a Frontex, apesar de um clima mais positivo em relação à situação no Irã e o fim de algumas das sanções internacionais, o número de pedidos de asilo por parte de iranianos na Europa aumentou em 50% entre 2015 e 2016, principalmente no Reino Unido e na Alemanha.  Além disso, o número de pedidos no continente europeu já é maior que o volume de entradas ilegais de iranianos. 
Mas o que as investigações revelaram é que rotas alternativas foram estabelecidas para permitir que os iranianos conseguissem chegar até um aeroporto europeu. A porta de entrada, longe das fronteiras tradicionais do Leste do bloco, passou a ser Madri. 
De acordo com a Frontex, grupos de iranianos passaram a deixar o país, viajar até a Turquia. De lá, voavam para os Emirados Árabes ou Catar. A próxima etapa era um voo direto para São Paulo ou para o Rio de Janeiro.
Seria principalmente no Brasil que documentos falsificados eram entregues aos grupos que depois de alguns dias nas cidades brasileiras voavam para Assunção ou La Paz. Já com novas identidades, os iranianos embarcavam para a Europa, usando a rota direta de Madri. 
Segundo a Frontex, os iranianos representam já um dos maiores grupos identificados em aeroportos com documentos falsos. Um a cada quatro iraniano que foi pego com documentos falsos vinha, na realidade, de outros países que não o seu, o que revela a tentativa de burlar os controles e o sistema criado para receber os passaportes falsos já fora de seus países.
Apesar da ausência de dados sobre quantos conseguiram entrar na Europa usando essa rota, a polícia do Velho Continente admite que o sistema pode ter permitido o acesso a "dezenas de iranianos". 
Além da rota sul-americana, eles ainda passaram a usar o território turco para voarem até aeroportos menores - e com controle mais relaxado - da Espanha. No Reino Unido, por exemplo, um total de 500 iranianos foram detidos nos aeroportos em 2016 com passaportes falsos. 
Já no Espaço Schengen, área de fronteiras comuns entre os países europeus, foram 375 casos de passaportes falsos descobertos com iranianos em 2016; em 2014 foram 263 casos. 
De acordo com a Frontex, a expulsão de iranianos vivendo de forma irregular pela Europa aumentou de forma substancial. Em 2013, foram 2,7 mil casos de deportações. No ano passado, essa taxa chegou a 6,9 mil. 
No caso da rota sul-americana, ela foi descoberta depois que a Polícia Nacional da Espanha prendeu, em meados de 2016, quatro pessoas em Madri, Barcelona e Girona responsáveis por organizar a rota. Para sair do Irã e chegar à Europa, via Brasil, o grupo cobrava 20 mil euros de cada um dos imigrantes. Um dos presos trabalhava até mesmo como intérprete em tribunais espanhois, responsáveis por julgar casos de iranianos que falassem apenas farsi. 
Segundo as investigações, era a partir do contato que tinha com a administração pública espanhola que o iraniano fazia seus contatos para permitir a viagem dos imigrantes. 
As prisões iniciais deram pistas sobre o que parecia ser um grupo ainda maior e, nas semanas seguintes, 15 pessoas foram presas por falsificar documentos em diversas cidades da Espanha.