O ócio não só faz bem. É um ato de heroísmo no mundo da supercompetição
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Já passei tantas ocasiões sem fazer coisa nenhuma. A ética cristã costuma ensinar que foram dias perdidos. Os provérbios da Bíblia afirmam que o preguiçoso se acha sábio, mas não passa de um tolo. A preguiça consta da famosa lista dos sete pecados capitais. No entanto, apesar de tudo, jamais me senti tão recompensado quanto nessas ocasiões em que a mente e o corpo flutuaram pelo nada e meus atos significaram nada para o progresso da humanidade. É o estado de ser que os italianos chamam de “dolce far niente”, o doce fazer nada. Mas, salvo esta expressão e a filosofia taoísta, que preconiza a extrema relevância ética e política do “wu-wei”, a perfeita inação, não conseguia encontrar apoio teórico à minha filosofia de existência.
Isso até encontrar o oblomovismo. Essa doutrina originária da literatura russa insuflou um novo entusiasmo em minha hiperinatividade. Ela pode ser explicada como a teoria da preguiça de alto desempenho, que, caso seja aplicada, poderia salvar a humanidade do abismo. Ela serve, pelo menos, para me salvar do excesso de obrigações. Na verdade, adaptei o oblomovismo a minhas necessidades. Tropicalizei suas lições. Não é Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade, que vive a bocejar “ai, que preguiça”? Ele tinha razão.
Mas voltemos ao oblomovismo. O nome deriva de Oblómov, o incrível romance satírico de Ivan Gontcharóv (1812-1891), publicado em 1859, agora publicado no Brasil (CosacNaify, 736 páginas, R$119) em tradução de Rubens Figueiredo. O herói epônimo do romance é um senhor de terras preguiçoso, que gasta seus dias na cama ou no sofá, sonhando em reformar sua propriedade e recebendo visitas de amigos. Personagens, ações e diálogos ocorrem em torno dele, como se ele fosse o centro de um universo. Seu antagonista é seu amigo, o “alemão” Andrei Stoltz, um empreendedor entusiasmado com as conquistas da indústria. Oblómov não se emociona com o capitalismo que se instala na velha Rússia. Prefere ficar parado. Quando Stoltz o convence a sair para uma festa, ele conhece uma amiga de Stoltz, Olga Ilinskaya. Apaixona-se por ela, pede-a em casamento, mas nada acontece. Em seu pendor pela inação, Oblómov se muda para o subúrbio de São Petersburgo, onde amarga a decadência sem reclamar. Na verdade, consegue ainda se apaixonar pela viúva Agáfa Matviéievna Pchenítsina. O casal tem um filho. Enquanto seu espírito se apaga, Olga e Stoltz se unem e adotam o filho de Oblómov. Para nosso herói, a vida continua igual a ela própria. Assim Goncharóv descreve Oblómov: “Os pensamentos voavam como pássaros pelo rosto, chegavam até os olhos, paravam nos lábios semicerrados, escondiam-se no franzir das sobrancelhas. Depois desapareciam de vez, e então todo o rosto coruscava com a luz da despreocupação”.
Outra é a imagem de Oblómov aos olhos dos estudiosos de literatura do século XX, para os quais a política importava menos que a linguagem e a intertextualidade. “Oblómov é certamente um personagem que merece lugar na galeria de figuras imortais criada pela imaginação humana”, escreveu o especialista em literatura russa italiano Renato Poggioli (1907-1963), comparando o protagonista a Don Quixote de Cervantes e a Ulisses, da Odisseia de Homero. É que a vida interior do protagonista é tão rica e contemplativa, que é capaz de encenar epopeias sem que saia de sua cama. Oblómov é um preguiçoso sublime. Poggioli termina seu ensaio em tom grandiloquente: “Oblómov é, com efeito, o herói máximo de um grande poema cíclico, de um vasto épico em prosa, mesmo que seja apenas uma Odisseia dos chinelos ou uma Ilíada do roupão”. Não parece um enredo promissor, não contivesse ele uma alta densidade simbólica. E, como todo símbolo, o significado se altera com o tempo. Para os compatriotas de Goncharóv daquele tempo, o personagem Oblómov representava uma sátira da alma russa que se afundava paralisada em suas tradições. Nos anos 1850 e 1860, a literatura refletia e dramatizava as mudanças históricas. No ensaio “O que é o oblomovismo” (1859), Dóbroliubov caracteriza os tipos da Rússia dos anos 1860, nos últimos estertores da escravidão e do feudalismo. Ele percebeu em Oblómov os vícios do antigo senhor feudal, um homem supérfluo incapaz de se adaptar à nova realidade do país. Assim, Oblómov refletia a imagem de uma elite russa retrógrada, agora estigmatizada pelos intelectuais. O oblomovismo é a inação da elite. Três anos depois, em 1862, no romance Pais e filhos (1862), Ivan Turguêniev retrataria as contradições revolucionárias daquele tempo, em especial o niilismo, que suplantava as outras correntes revolucionárias.
Nessa excêntrica epopeia, quanto mais o herói recua dos desafios e aventuras, mais ele se aprofunda no que interessa: as trepidações do espírito, das ideias que farfalham as asas, voam e vão embora, para dar lugar ao mais delicioso bocejo. Espreguiçar-se, ensina Oblómov, pode ser a mais nobre das formas de ação.
Como o oblomovismo pode ser convertido em atitude inovadora em nossos dias? Ora, em um mundo de supercompetição e cobrança de produtividade, o ócio criativo ou mesmo a preguiça desprovida de imaginação podem servir como antídoto aos abusos do mundo do trabalho e sua exigência de performances perfeitas. Por essa razão subversora, os sociólogos andam reabilitando a ética dos sambistas malandros dos anos 1920, que diziam “trabalhar só obrigado, por gosto ninguém vai lá” (“Se você jurar”, samba de Ismael Silva e Nilton Bastos, de 1928). Para responder ao mundo do trabalho desenfreado e da automação, da despersonificação e da alienação, nada mais eficiente que a preguiça exercida em modo turbo, em alto desempenho. A preguiça ganha a reputação de verdadeiro ato de heroísmo de nossos tempos hiperativos.
Assim, consigo justificar e até enobrecer meus atos antes considerados abjetos: isolar-me na cama, fechar os olhos e ouvir a linda canção do nada. Ao inverter a Bíblia, torno-me um sábio que se pensa tolo. E valendo-me do oblomovismo tropical, arvorar-me em me julgar a um só tempo preguiçoso, revolucionário e respeitável. Siga o oblomovismo. Cultive o próprio bocejo e tome posse do universo. Viva a sua Jornada nas estrelas de calção e chinelos.
Assim, consigo justificar e até enobrecer meus atos antes considerados abjetos: isolar-me na cama, fechar os olhos e ouvir a linda canção do nada. Ao inverter a Bíblia, torno-me um sábio que se pensa tolo. E valendo-me do oblomovismo tropical, arvorar-me em me julgar a um só tempo preguiçoso, revolucionário e respeitável. Siga o oblomovismo. Cultive o próprio bocejo e tome posse do universo. Viva a sua Jornada nas estrelas de calção e chinelos.
(Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras.)