CRACÓVIA
Rudolf Hoss, um dos comandante do complexo de Auschwitz (Polônia), contou durante seu julgamento em Nurembergue, que, um dia, uma mãe judia passou por ele, em direção à câmara de gás do campo de extermínio de Birkenau, levando quatro filhos pela mão. Disse-lhe: "Como vocês podem matar crianças tão lindas e tão queridas?".
Hoss não respondeu --ou, ao menos, não há registro de sua resposta-- mas, se o tivesse feito, provavelmente diria, como tantos outros chefes de campos de concentração/extermínio, que estava apenas cumprindo ordens.
Ele e seus companheiros nazistas cumpriram tão bem as ordens que, só em Auschwitz/Birkenau, foram assassinadas 1,1 milhão de pessoas, 90% delas judias.
"Judeus é uma raça que deve ser totalmente exterminada", escreveu Hans Frenk, governador-geral alemão da Polônia ocupada, conforme placa em uma das construções de Auschwitz.
Para deixar claro: Auschwitz era um grande quartel do Exército polonês, que os alemães transformaram em campo de prisioneiros, depois de ocupar a Polônia em 1939, logo no início da guerra.
Morreram em Auschwitz cerca de 11 mil pessoas. A grande máquina de matar (1,1 milhão) estava instalada a três quilômetros dali, em Birkenau, para onde foram levados judeus de toda a Europa, de Paris, a oeste, a Bucareste, a leste, de Roma (sul) a Oslo (norte), bem como prisioneiros de guerra soviéticos, ciganos, testemunhas de Jeová.
Como sou fascinado pela história da Segunda Guerra Mundial (1939/45) e todos os dramas correlatos, como o do Holocausto, que os judeus preferem chamar de "Shoa" (hecatombe em hebraico), já li muito a respeito, já vi muitos filmes e documentários, inclusive duas películas de grande sucesso, como "O Pianista", que fala do gueto de Varsóvia, e "A Lista de Schindler", filmada aqui mesmo em Cracóvia, a cidade grande mais próxima do complexo de Auschwitz.
Mesmo assim, choca a visita ao complexo, que fiz domingo, como parte de uma comitiva de jornalistas latino-americanos convidados pelo Congresso Judaico Latino-Americano.
Destaco dois choques em especial: primeiro, no Museu de Auschwitz, a visão de um compartimento em que foram empilhados pertences de criaças mortas em Birkenau. Sapatinhos, uma boneca quebrada, roupinhas até muito pequenas, de bebês mesmo.
Crianças eram condenadas à morte por serem crianças e, portanto, incapazes de servir de mão de obra escrava no campo ou em fábricas fora dele.
Veio-me à memória uma frase do notável escritor argentino Ernesto Sábato, quando presidia a mesa de instalação da entidade "Abuelas de Plaza de Mayo", o grupo de senhoras que lutaria pela recuperação dos netos desaparecidos em outro genocídio (menor em escala, mas genocídio de todo modo), o praticado pela ditadura argentina do período 1976/1983. Dizia Sábato: "Os adultos de algo somos sempre culpados. Mas as crianças, de que podem ser culpadas as crianças?".
Em Auschwitz/Birkenau, foram culpadas de não terem força para trabalhar como escravos.
Segundo choque: uma pilha imensa de cabelos arrrancados dos prisioneiros. No total 1.950 quilos, vendidos para a indústria têxtil alemã a 50 centavos (do marco do Reich) o quilo. Ou seja, a máquina de matar era também uma indústria --e empresas alemãs se beneficiavam dos mortos.
Seria pretensão excessiva relatar aqui o funcionamento dos campos, sobre o que há abundante literatura.
Prefiro, por isso, olhar para a vida depois da morte.
Os judeus vêm em grande quantidade à Polônia, para preservar a memória dos mortos, claro, mas também para celebrar a sobrevivência. Cantam inexoravelmente o hino nacional de Israel, Haktivah ("Esperança"), esperança de "de ser um povo livre em nossa terra/A terra de Sião e Jerusalém", como diz a estrofe.
Erguem a bandeira azul-e-branca com a estrela de Davi, como se dissessem "Am Israel Chai", "o povo de Israel vive".
Revive talvez fosse a palavra certa. O fato é que, desde que se livrou do comunismo, a Polônia patrocina uma recuperação da história do judaísmo em terras polonesas. Cerca de três milhões de judeus viviam na Polônia em 1939, quando o país foi ocupado.
Só em Cracóvia, 61 quilômetros ao norte dos campos, a chamada Antiga Sinagoga é de 1407, instalada no que viria a ser um bairro judeu, o de Kazimiers, nome do rei polonês que convidou os judeus a se instalarem no país, pela "expertise" em comércio.
Com a guerra, Kazimiers virou um gueto. Com o fim do comunismo, há 20 anos, virou um "point" de novo judeu, embora não mais habitado por judeus. São mil, pouco mais ou menos, os que ainda vivem na cidade.
Mas a pracinha do bairro tem restaurantes com nomes como "Ariel", tipicamente judaico, escrito em cima da reprodução da menorá, o candelabro de sete braços que é um dos símbolos da religião.
Há até uma espécie de Projac judeu: uma ruazinha que sai da praça e na qual se reproduziram lojas de comerciantes judeus, não ativas hoje.
E há absurdos, como a venda, no mercadinho próximo, de reproduções da estrela amarela que os alemães obrigavam os judeus a usar e de uma braçadeira do gueto de Cracóvia - uma "turistização" da morte.
Aliás, a comunidade judaica discute hoje o chamado "Turismo nos Campos da Morte". Esse tipo de turismo "reforça a noção de judeus como vítimas que enfrentam um mundo hostil e violento", escreve Shana Penn, diretora-executiva da Fundação Taube para a Vida e a Cultura Judaica.
Reforça também um espécie de preconceito contra a Polônia, como se ela --e não a Alemanha nazista-- tivesse sido responsável pelo Holocausto.
Eduardo Gabor, mestre em Conflitos Internacionais pela Universidade de Tel Aviv e integrante do grupo de brasileiros convidado pelo Congresso Judaico Latino-Americano, conta que, em 2009, quando ele participou da "Marcha pela Vida", havia jovens que se recusavam a trocar seus dólares/euros pelos zloty polonês para não ter nas mãos a moeda do país em que morreram tantos judeus.
Denise Goldfarb Terpins, mulher de Jack Terpins, presidente do Congresso, conta que seus avós, embora poloneses, se recusavam, quando foram para o Brasil, a falar o polonês, como se recusaram sempre a voltar à Polônia.
No entanto, cerca de 40 mil judeus fazem, todos os anos, uma peregrinação à Polônia (e depois Israel) que a comunidade judaica organiza em programas como a "Marcha pela Vida", iniciada em 1988.
Vida e morte, pois, acabam se encontrando especialmente em Cracóvia. Celso Zilbovicius, coordenador educacional desse tipo de visitas, conta que alguns jovens que visitam os campos, lhe perguntam depois se Deus existe.O que ele responde? "Deus não passou por aqui, porque achou que é uma obra dos homens".
Mas, se a morte é uma obra dos homens, a vida também é, do que dá testemunho um cartaz pregado na pracinha de Kazimiers:
"O que faz um judeu em Cracóvia? Se diverte".
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".