Na 'Visita' de hoje, Claudia reflete sobre o anti-herói "libertador", que mostra na ficção a face obscura de todos nós
28/09/2014 11h27
Quando eu era adolescente, lembro que as séries e programas que eu mais gostava na TV eram, em geral, de humor. Os dramas se restringiam às novelas mexicanas, a alguns personagens da novela das 8 e ao cinema, claro. Jeannie é um gênio, Os Trapalhões, intermináveis sessões da tarde, depois Friends, Seinfeld e Sex and the city. Em fases diferentes, captavam minha atenção pelo teor principalmente humorístico de seus personagens e um jeito leve de olhar a vida.
De alguns anos para cá, não sei se porque eu mudei, ou porque o mercado mudou, ou um misto dos dois, passei a me sentir atraída por uma verdadeira escória humana em forma de personagens em dramas onde não há sequer uma pessoa feliz. Nem mesmo os cães. O que houve?
Que atração é essa por dramas e que proliferação louca é essa de séries como The Killing, The Leftovers, House of Cards, Dexter, Breaking Bad, com personagens atormentados, egoístas, gananciosos, maus como pica-paus, essencialmente tristes, sequelados pelas agruras da vida quando não seriamente doentes na alma?
O que se tornou frouxo e desinteressante nos finais felizes, nas piadas e risos entremeando os diálogos, e moveu as atenções para histórias estreladas por vilões sem escrúpulo, que sofrem consequências implacáveis pelos seus atos, nos envolvem numa aura de ambiguidade sem fim e atrapalham nosso sono?
Comecei a assuntar sobre o tema e, ao mesmo tempo, olhar um pouco para dentro, em busca de algumas respostas. O que me atrai em histórias como Breaking Bad, por exemplo, (que conta a saga de um professor de química dono de um imenso orgulho ferido que de repente se vê com pouca grana, mulher grávida e um câncer no pulmão), é a curiosidade de espiar dentro da mente de uma alma atormentada e transitar em territórios novos, inexplorados. A ficção nos leva a vidas não vividas, a lugares de acesso – a princípio - proibido.
Um amigo roteirista diz que o anti-herói é libertador porque faz coisas que nós não podemos fazer. “Você se identifica com o que fala com você, com medos, ideias e sonhos”, diz a psicóloga.
Ver personagens sem talento em diversas áreas de vida nos liberta e exercita o pensamento em torno das nossas próprias cobranças. Ver mães absolutamente inaptas como a detetive Linden, em The Killing, traumatizados na infância como Dexter ou ainda lidando com perdas gigantescas como os abandonados da série The Leftovers nos põe em contato com dores certamente desconhecidas em sua intensidade mas familiares em alguma medida, pois todos temos nossos traumas, uma certa falta de traquejo para viver no mundo, nossas carências.
O amigo roteirista diz que todo mundo é péssimo em alguma área da vida - daí a empatia com essas pessoas ficcionais que se tornam reais, parceiros, amigos, que passamos a conhecer melhor do que a nossos amigos, quiçá filhos, maridos, esposas.
Eu diria também que as dores distantes – as da ficção - são mais palatáveis, mais digeríveis. Tragédias vividas na ficção são uma espécie de “treino” para o mundo real, acreditam alguns, mas o fato é que mantêm a dor a uma distância segura regulamentar. Na ficção, a dor é a dor do outro que não nos afeta a alma.
Atualmente, há uma máxima na dramaturgia tradicional que demanda aos roteiristas que evitem pessoas medianas: é preciso desenvolver personagens extremos, porque é por elas que as pessoas se interessam mais. Mas o que são, afinal, pessoas medianas? Eu acredito firmemente que elas não existem. Todas as pessoas possuem vidas interiores secretas e, por mais medianas pareçam, vivenciam longe das vistas da maioria experiências e histórias “extremas” – essas que tanto captam a nossa atenção.
Outro amigo repete: pessoas normais não rendem histórias. E quem é normal, afinal? O que me atrai nesses personagens e suas histórias interessantes, creio, é justamente a sensação de que não sabemos nada sobre ninguém e aqueles que têm, aparentemente, uma vida “normal”, podem ter uma vida interior rica e inacessível. A ficção faz o papel da lente de aumento que nos dá o privilégio de passear pelo mundo interior das pessoas aparentemente medianas, saber seus pensamentos mais angustiantes, seus dramas mais conflituosos, acompanhar suas piores decisões.
Nelson Rodrigues mostrou em suas peças “a sombra” das pessoas comuns da classe média carioca exatamente como quem espia pelo buraco da fechadura e descobre o lado mais primitivo – e real – de cada um. Para ele, o canalha é uma dimensão que existe em qualquer um, e todo grande homem é obsessivo. Ele disse, certa vez, que para ser purificadora, a ficção precisa ser atroz. “O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós”. Portanto, o que seria de nós sem a ficção?
Esse mundo de pessoas cheias de conflitos, segredos, me faz olhar ao meu redor com a curiosidade ampliada. E também com menos idealização e ilusões a respeito de finais felizes, casamentos-modelo e vidas perfeitas. Não acredito em pessoas normais, medianas, ou comuns. Ou completamente felizes ou tristes. Pessoas são interessantes, e conhecê-las melhor, ou ler e escrever sobre elas é um exercício fascinante.
De vez em quando até faz bem ver um final “feliz” – ainda que contido, como o dos personagens principais da série The Killing. Com olhares mais resignados do que felizes, foi também a eles permitido superar suas (muitas) mazelas e encontrar um lugar mais aconchegante no mundo – depois, claro, de um bocado de batalha e sofrimento. Não é assim, afinal de contas, com boa parte das pessoas?
Gostar de histórias “esquisitas”, afinal de contas, não nos torna melhores ou piores, mas nos enriquece de possibilidades, de imaginação, de fantasia, de criatividade – alimentos da alma.
Bom domingo!