Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa -
7.8.2014
| 12h00m
Jan van Eyck (1390/1441) é considerado um dos maiores pintores de todos os tempos. Ele foi certamente beneficiado pelos avanços nas tintas a óleo que ocorreram em seu tempo, o que lhe permitiu pintar o cenário das imagens que queria registrar com riqueza e minúcia de detalhes, um realismo até então desconhecido nas artes plásticas. Foi dito que ele conhecia tecidos como um tecelão, prédios como um arquiteto e plantas como um botânico.
É difícil, para quem olha esse quadro, acreditar que o brocado do manto do Arcanjo Gabriel não foi tecido em ouro de verdade, mas sim feito de 'fios' tramados em pinceladas de pigmentos amarelos.
A Anunciação relatada por São Lucas inspirou van Eyck. Ele retratou o momento em que Gabriel saúda Maria "Ave Gra Plena" (Ave Maria Cheia de Graça) e quando ele anuncia que ela carrega em seu ventre o filho de Deus: ela humildemente se retrai e responde: "Ecce Ancilla Dni" (Eis a serva do Senhor). As palavras dela estão escritas de cabeça para baixo, voltadas para o alto, porque são dirigidas ao Senhor.
De cada lado da janela solitária no alto do quadro há pinturas desmaiadas que contam quando Moisés foi encontrado pela filha do faraó (à esquerda) e o momento em que Moises recebeu os Dez Mandamentos. Sob a janela, os medalhões retratam Isaac e Jacó.
O Espírito Santo desce sobre Maria sete raios de sol (o único detalhe em ouro nesse quadro). Esse é o momento em que têm início os planos de Deus para salvar a Humanidade. Através do Cristo encarnado Homem, a antiga Era da Lei é transformada na nova Era da Graça.
Todos os elementos da pintura contribuem para esse tema. A arquitetura passa das antigas formas Romanescas, arredondadas, para os arcos góticos pontiagudos. Nos ladrilhos do chão, cenas do Antigo Testamento prefiguram acontecimentos do Novo Testamento: Davi vencendo Golias, por exemplo, antecipa o triunfo de Cristo sobre o Demônio. A janela no alto da tela, onde Jeová está, contrasta com a janela tripla em baixo, que sugere a trindade cristã. A figura de Maria, com tamanho desproporcional ao tamanho da capela, a identifica simbolicamente com a Igreja. Os lírios ao seu lado representam a pureza. O banco aos pés de Maria é símbolo que vem desde os primórdios da arte bizantina: refere-se ao ainda "trono vazio".
O caminho percorrido por essa pintura, até onde se sabe, foi o seguinte: um visitante da Cartuxa de Dijon, em 1791, quando essa cidade era a capital do Ducado da Borgonha, a descreve como a obra que viu na capela ducal do monastério; em 1817, o rei Guilherme II da Holanda a comprou num leilão em Paris; em 1841 era parte de um lote num leilão em Haia e foi comprada pelo czar Nicolau I da Rússia para o Museu Hermitage, em São Petersburgo.
Foram os especialistas do Hermitage que limparam pela primeira vez o quadro, que carregava séculos de poeira. Com os poucos recursos da época, não ficou um trabalho perfeito. Resolveram então transferir a pintura do painel em madeira para uma tela, o que foi feito entre 1864 e 1870, usando um método hoje condenado por retirar o brilho das cores e prejudicar a textura das tintas.
Quando Stalin precisou de dinheiro para desenvolver a incipiente indústria soviética, ele resolveu vender algumas das obras-primas do Hermitage, apesar da oposição ferrenha dos diretores do museu. Mas, naquela época, isso não era de grande valia...
Em 1930, o milionário americano Andrew Mellon, às voltas com dívidas com o IR, resolveu comprar alguns desses quadros, construir um museu para abrigá-los, a National Gallery of Art, e o doar ao país, para escapar dos rigores da lei. Para sorte do povo americano, A Anunciação estava no lote.
Em 1998, uma restauração da tela com os métodos mais modernos, revelou muito da tecnica de van Eyck. O domínio que tinha da tinta a óleo ficou evidente. Todo o ouro do manto de Gabriel é tinta a óleo em pinceladas de tinta sobre tinta ainda fresca. Numa área de sombras, foi com os dedos que o pintor produziu o brilho do esmalte. O jogo de luzes na tela é extraordinário; os detalhes que nos levam à ilusão de ver ouro onde só há tinta, são excepcionais.
Essa última restauração revelou os tons usados por van Eyck no original. O azul do manto de Maria surgiu tão forte que emocionou os técnicos do museu.
Um detalhe curioso: o arcanjo é muito mais bonito do que Maria. Explicação: Maria não podia inspirar os homens por sua beleza. Já um anjo nunca seria olhado com olhares menos puros. Lembremo-nos que esse quadro foi pintado em 1434/36...
A Anunciação, de Jan Van Eyck, 90.2 x 34.1cm, acervo da National Gallery of Art, Washington, DC
Enviado por Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa -
5.8.2014
| 12h00m
OBRA-PRIMA DO DIA (ENGENHARIA)
Valletta, capital da ilha de Malta, deve sua existência aos Cavaleiros de São João que a planejaram como refúgio para os cruzados feridos e peregrinos desamparados durante as Cruzadas do século XVI. Antes da chegada dos Cruzados, o Monte Sceberras, onde se ergue Valleta, era uma faixa estreita e árida de terra entre duas enseadas.
No início do século XVI havia uma única edificação: uma pequena torre de vigia chamada Sant'Elmo. Juntos, o Grande Mestre da Ordem, La Valette, o Papa Pio V e Felipe II de Espanha, decidiram que era necessário providenciar defesas adequadas para que os Cavaleiros da Ordem de São João não perdessem aquele importante posto avançado no Mediterrâneo.
Os trabalhos para a criação dos primeiros bastiões começaram em março de 1566. Só depois disso, foi possível prosseguir com os mais importantes edifícios: a Sacra Enfermaria, o Palácio Magisterial, os Sete Albergues ou Pousadas para Abrigo dos Cavaleiros e a Igreja de São João.
A nova cidade, com seus bastiões seguros e fossos profundos, tornou-se uma fortaleza de importância estratégica. As ruas da cidade, planejadas com a defesa em mente, têm uma planta algo irregular: algumas descem tanto mais inclinadas quanto mais próximas da ponta da península. As escadas em certas ruas não têm as dimensóes normais já que foram criadas para permitir que os cavaleiros, em suas armaduras, pudessem subir seus degraus. Acima, rua típica de Valletta.
Dentre seus belos edifícios, o mais imponente e importante é a Igreja de São João (acima), mais conhecida como Co-Catedral de S. João, construída entre 1573 e 1578. Incumbida pelo Grão-Mestre Jean de la Cassière em 1572 como igreja conventual da Ordem dos Cavaleiros de S. João do Hospital - conhecidos como Hospitalários ou Cavaleiros de Malta - a Igreja foi desenhada pelo arquiteto militar maltês Gerolamo Cassar que delineou alguns dos edifícios mais proeminentes de Valetta.
A catedral é uma joia. Conhecida como o primeiro exemplo perfeito do estilo Barroco, ela define claramente o papel espiritual e militar de seus patronos.
Nas paredes desenhos esculpidos em suas pedras; no teto em abóbada e nos altares laterais as pinturas referem-se à vida de São João. A nave central, com afrescos de Mattia Preti é, por si só, uma obra-prima.
Tendo sido o local do sepultamento de vários príncipes europeus, o chão da catedral é pavimentado com mais de 300 lápides em mármore.
Entre seus tesouros está o famoso quadro de Caravaggio sobre a decapitação de São João (abaixo). É o maior quadro do artista (3m65 x 5m18) e o único que ele assinou. Considerada a sua obra mais importante, Caravaggio colocou na tela o momento no qual São João é decapitado a mando do rei Herodes para satisfazer o pedido lúbrico da dançarina Salomé. A cena trágica se passa no pátio de uma prisão e é observada por dois prisioneiros através de uma grade, enquanto uma jovem e um velho estão a postos com uma bandeja nas mãos à espera da cabeça cortada. O sangue escorre do pescoço de São João para a borda da tela e foi no sangue que Caravaggio assinou seu nome.
Igreja Conventual da Ordem de São João do Hospital, Valletta, Malta