domingo, 16 de junho de 2013

CHARGE DO PATER


Esta charge do Pater foi feita originalmente para o

O clamor das turbas, por Gaudêncio Torquato


Um zumbido ecoa forte nos ouvidos de governantes dos mais diferentes recantos do planeta, fruto de manifestações que tomam conta de praças e ruas de tradicionais centros urbanos.
Em Istambul, na Turquia, na onda de um movimento que ocorre há semanas, a multidão derruba barricadas, enfrenta a Polícia e ocupa o mais importante espaço de concentração popular, a praça Taksim, em revolta contra o governo, que pretende construir na maior área verde da capital, o Parque Gezi, um Shopping Center.
São Paulo e Rio de Janeiro são palco de movimentos que arrastam grupos dos mais variados setores da sociedade em passeatas que culminam em vandalismo.
O foco das ações mais retumbantes nas duas principais capitais do país é o protesto contra o aumento das passagens de ônibus, que mobiliza a estudantada sob bandeiras de alguns partidos (PSOL, PSTU e PCO e juventude do PT).
Mas palavras de ordem, ecos e ruídos de grupamentos diversos também se fazem ouvir pelo território, a expressar uma locução em defesa de interesses de classes, etnias, gêneros e religião, entre outras frentes.
A par das intenções explícitas de cada movimento, que lição pode se tirar da efervescência social que se expande pelos continentes e que se acentua em nossos trópicos?
O pano de fundo sobre o qual se projeta o cenário de movimentos populares, protestos e ondas de insatisfação deixa ver duas crises: a econômico-financeira e a política.
A primeira, deflagrada em 2008, implicou estagnação do crescimento das Nações, elevadas taxas de desemprego, alto custo dos alimentos e rebaixamento dos níveis de vida das comunidades, cuja referência mais simbólica é a fila dos sem teto em ruas de capitais charmosas (incluindo as metrópoles norte-americanas) e a escalada de desocupações de imóveis em países como Espanha e Portugal. Neste último, aliás, mais de 3 mil manifestações realizaram-se em 2012.
Na esteira da crise financeira, emergiu, em 2011, o movimento Occupy Wall Steet, em Nova Iorque, cujo escopo traduzia a inconformidade com as desigualdades, a corrupção, a influência das empresas e do dinheiro na política, bandeiras que passaram a ser desfraldadas noutras praças mundiais.
A segunda crise, a da política, tem a ver com a metáfora da panela de pressão: a válvula entupida não deixa escapar o vapor, gerando, assim, o “estouro da boiada”. Mais precisamente, a ausência de respiro democrático jogou o povo nas ruas para exigir a abertura de canais de participação política e um fim a sistemas opressores.
A avalanche tomou conta de capitais e cidades do Egito, Tunísia, Líbia, Síria e Barein, com o expressivo nome de Primavera Árabe, inaugurando um ciclo democrático que culminou com a derrubada de quatro governantes.
Cumpriram papéis relevantes nesse processo as redes eletrônicas, que propiciaram a integração de grupos da comunidade internacional.
Esses tempos de grandes carências explicam o atual estágio civilizatório da maioria das Nações. Resta lembrar, em complemento, a crise que assola a democracia representativa, que prometeu implantar (e não o fez) o ideário dos Direitos Humanos, a partir da igualdade de oportunidades entre as pessoas, o acesso de todos à justiça, o combate ao poder invisível, a transparência dos governos e a educação para a Cidadania, entre outros, como lembra Norberto Bobbio.
Os mecanismos clássicos da política saíram dos eixos: os espectros ideológicos perderam as cores originais; os partidos transformaram-se em entes pasteurizados; os parlamentos, sem força, tornaram-se reféns dos poderes executivos; as bases partidárias arrefeceram os ânimos
Formou-se, ao longo da cadeia de degradação, imenso vácuo entre a política e a sociedade. O cidadão comum, que tanto esperava dos políticos, passa a enxergá-los como “oportunistas e aventureiros”, pelo fato de trocarem o escopo de “servir” pela ambição de “servir-se”.
Frustrados, grupos de diferentes matizes se organizam em bastiões de defesa de interesses - associações, sindicatos, movimentos, federações, entidades que praticam uma nova ordem política. São esses novos pólos – simbolizando um poder centrípeto - que animam a sociedade com sua forte capacidade de mobilização, fazendo ecoar uma peroração indignada.
Ganha corpo a hipótese de que essa gama de manifestações, aqui e alhures, é o primeiro desenho de democracia participativa na contemporaneidade, forma direta da sociedade organizada entrar no circuito de pressões e reivindicações.
O florescimento dessa modalidade é uma resposta ao desencanto com os costumes da velha política e suas promessas não cumpridas e, ainda, uma crítica aos precários serviços públicos. Chegamos, nesse ponto, à atualidade brasileira.
Multiplicam-se as passeatas de protesto. Só no ano passado, numa única via de São Paulo, a avenida Paulista, ocorreram mais de 3 mil manifestações, algumas em choque com a Polícia, como a que ocorreu nessa quinta feira.
Os eventos são preocupantes pela quebra da ordem legal: atos de vandalismo e também atos de violência por parte da Polícia. Onde isso vai parar?
Sabe-se que, ao lado de questões objetivas, como redução do preço de passagens de ônibus, refrãos de um discurso mais abrangente são entoados, alguns proclamando “o aborto livre”, outros exigindo fim das “discriminações”, o que inclui, até, o direito de meninos se vestirem de saias, como o incidente ocorrido, há dias, em um colégio de São Paulo. Tudo passa a ser motivo para a quebra da normalidade.
Na Zona Sul da capital paulista, também semana passada, a Polícia se confrontou com cerca de 500 famílias em ação de reintegração de posse de um terreno, conflito fundiário que agita a população indígena em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul, onde ocorreu a morte de um índio terena.
O clamor das turbas ganha volume em todo o país, a denotar insatisfação com o establishment. Os tempos são outros, mas Castro Alves continua lembrado: “a praça é do povo como o céu é do condor”. Mas a praça não pode e não deve ser espaço para a violência.

Gaudêncio Torquatojornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

Junto à Madonna de Kornmarkt


Percival Puggina
A mulher vestia um niqab preto, do tipo utilizado em países da Península Arábica. Niqab (máscara) é aquela vestimenta feminina muçulmana que deixa apenas uma fresta para os olhos. Embora tenha sido concebida em tempos anteriores a Maomé como uma das mais recatadas roupas com que uma mulher se pudesse vestir, a figura diante de mim se destacava em meio à colorida multidão de turistas das mais variadas origens.
De repente, num gesto rápido, que pretendia ser discreto, ela fez surgir do meio dos panos uma câmera digital. Levou-a aos olhos e, com apenas a mão esquerda (também coberta por luva negra), capturou a imagem perante a qual se comprimiam vários grupos de visitantes. A mesma que me levava, uma vez mais, até a praça Kornmarkt da encantadora cidade de Heidelberg.
Há ali pequena fonte sobre a qual se eleva uma escultura de Nossa Senhora. É a Madonna da Kornmarkt. Traz ao colo o Menino Jesus e tem sob os pés o mundo, representado por uma esfera dourada. O Menino segura longa haste encimada por uma cruz e com a outra extremidade fere uma serpente. Era diante dessa imagem que, como acontece a cada dia, todos os dias do ano, se encontravam os turistas em meio aos quais a mulher de niqab.
Poucos haveriam de saber que aquela Madonna é apenas cópia da obra original, preservada no museu de arte e arqueologia da cidade. Foi esculpida por Peter van der Branden, em 1718, a ordem do príncipe local empenhado em difundir o catolicismo. À época, outras Madonnas também foram inseridas na paisagem de Heidelberg e muitos protestantes, como consequência, abandonaram a cidade. Passados três séculos, esses acirramentos político-religiosos perderam sentido.
ENCANTAMENTO
As imagens, no entanto, continuam suscitando interesse e são motivo de encantamento aos milhões de visitantes dos mais variados credos que fazem turismo no Velho Continente. Esplêndidas obras com inspiração cristã estão em toda parte – nas fachadas dos prédios particulares, no centro das praças, nos afrescos, telas, tapeçarias e imagens que decoram prédios públicos. Estão nos museus (repletos de tais obras), e são, junto com catedrais, mosteiros e grandes palácios o carro-chefe do imenso negócio turístico da Europa.

Pois bem, observando a mulher de niqab e seu interesse em capturar a imagem da Madonna da Kornmarkt, percebi que, apesar da diversidade de credos provavelmente adotados por turistas de varias etnias, oriundos de diferentes recantos do planeta, ninguém ali estava de nariz torcido, sentindo-se afrontado ou ultrajado em sua sensibilidade com a imagem de Maria Santíssima. Nem com qualquer símbolo ou representação artística, de qualquer religião, em parte alguma do mundo. Bem ao contrário, a atitude civilizada, nesses casos, é de respeito e encantamento perante expressões da tradição religiosa e cultural de cada local.
Portanto, incivilizada é a atitude de pequenas minorias que, no Brasil, se declaram ultrajadas com a presença desses símbolos e obras em espaços públicos. Aliás, duvido de que, distantes da base, desfrutando de umas férias na Europa, não posem para fotografias aos pés da Coluna Mariana na Marienplatz de Munique, da Pestsäule (coluna em reverência à Santíssima Trindade) em Viena, ou ao lado de qualquer dos 30 santos que  adornam a belíssima Ponte Carlos em Praga. Aqui, porém, são inimigos de um crucifixo na parede.

A mesa da cozinha - MARTHA MEDEIROS


ZERO HORA - 16/06

A mesa da cozinha é o local sagrado das conversas durante a madrugada, quando os irmãos chegam da balada com fissura por um gole de Coca-Cola e com histórias saindo pela boca: com quem ficaram ou não ficaram, o trajeto que fizeram para driblar a blitz, o preço da cerveja, e aí as amenidades evoluem para a filosofia, a necessidade de extrair da vida uma essência, a tentativa de escapar da insignificância, até que o dia começa a clarear e o cansaço avisa que é hora de ir para a cama.

Para alguns casais, a mesa da cozinha já serviu de cama, aliás.

A mesa da cozinha ouviu confissões de amigas que juraram guardar segredo, mas não conseguiram. O amante, a traição, a culpa, o nunca mais. A mesa escuta e não espalha, reconhece a inocência das fraquezas alheias e se sente honrada por ser confidente de tantas vidas.

A mesa da cozinha escutou o que os convidados não comentaram na sala, viu estranhos abrirem a geladeira atrás de algo mais substancial que canapés, suportou o peso de quem resolveu sentar sobre ela para fumar um cigarro antes de voltar para o burburinho da festa.

A mesa da cozinha já foi cenário de toda espécie de solidão.

Mas também de encontros. Viu o casal de namorados preparar, sem receita, seu primeiro salmão ao molho de manga, viu o menino nervoso abrir sua primeira garrafa de vinho para uma menina não menos nervosa, viu um beijo secreto entre primos, cuja família comemorava o Natal em torno da árvore, viu o marido se declarar para a esposa viciada em grifes ao surpreendê-la com um simples avental amarrado em torno da cintura.

A mesa da cozinha viu a mãe esquentar a primeira mamadeira às três da manhã, com cara de sono e felicidade. E o pai da criança, a caminho da área de serviço, segurando uma fralda suja com expressão de nojo, mas também de orgulho.

A mesa da cozinha viu a funcionária sentar no banquinho e, durante uma trégua entre um suflê e um pavê exigido pela patroa, acariciar sua primeira carteira de trabalho.

A mesa da cozinha viu o cachorro xeretar a lata de lixo e o gato lamber os restos que sobraram na louça do jantar. A mesa da cozinha viu a dona da casa tentar escrever um diário, coisas que ela sente e que não tem com quem dividir, a não ser com a luz amarelada do abajur.

A mesa da cozinha testemunhou lágrimas que foram secadas com o pano de prato. A mesa da cozinha possui manchas que contam histórias. A mesa da cozinha tem um pé frouxo que ninguém se lembra de aparafusar.

A mesa da cozinha já amparou carteados, velas acesas em dia de temporal, cinzeiros abarrotados, a roupa passada e dobrada antes de ir para as gavetas. A mesa da cozinha viu tudo.

Quando Dilma beijará a cruz? - EDITORIAL REVISTA ÉPOCA


REVISTA ÉPOCA

Já passou da hora de ela reavaliar os erros de sua gestão na economia


O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu recentemente que já passou a hora de o petismo beijar a cruz. Era uma referência irônica à relutância dos governos do PT de fazer as concessões de aeroportos, ferrovias e estradas e portos à iniciativa privada. Na prática, apesar de abjurar a palavra, eles já adotaram a demonizada "privatização”. Mas o fazem com tantas reticências que o programa anda aos solavancos — com os de- correntes prejuízos para a modernização da precária infraestrutura nacional.

Da mesma forma, pode-se dizer que chegará uma hora em que a presidente Dilma Rousseff terá de beijar a cruz em relação aos erros de seu governo na gestão da economia. No discurso, ela ainda é reticente em admiti-los, como fez, na semana passada, ao comparar seus críticos ao Velho do Restelo. Era uma referência ao personagem de Os Lusíadas, de Luís de Camões, que agourava os navegadores portugueses de partida da costa lusitana para desbravar mares. Na prática, o governo Dilma já tem dado, ainda que relutantemente, passos atrás na política que adotou em seus dois primeiros anos. É uma política que desajustou a economia brasileira, elevou a inflação, sem aumentara taxa média de crescimento anual do PIB, a menor desde o governo Collor.

Ao respaldar a decisão do Banco Central (BC) de elevar a taxa de juros e deixar a taxa de câmbio flutuar mais livremente, o Palácio do Planalto reconhe tacitamente, a necessidade de uma correção de rumos. As duas medidas representam um recuo na intervenção política do governo no BC, para forçar os juros para baixo e o câmbio para o alto. Os economistas desenvolvimentistas instalados no Ministério da Fazenda acreditavam que tais medidas acelerariam o crescimento brasileiro, ao lado da abertura das comportas dos gastos públicos, por meio de estímulos para certos setores. Tal objetivo foi frustrado. A meia-volta do BC foi ditada pelo crescimento da insatisfação popular com a renitência da inflação (registrada na pesquisa Datafolha que mostrou uma queda de 8 pontos na aprovação à presidente Dilma) e pelas mudanças nas expectativas dos investidores internacionais que valorizam o dólar. Agora, o governo precisa conter seus gastos. Na semana passada, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, numa tentativa de recuperar a credibilidade perdida da política fiscal, anunciou uma meta de 2,3% do PIB de superavit nas contas públicas. Disse que, se necessário, fará cortes para cumpri-la.

Será crível? Mesmo os amigos do Planalto, como o ex-ministro Delfim Netto, não hesitam em criticar os economistas oficiais. Inspirados, segundo ele, num "keynesianismo de pé quebrado", eles acreditam que os financiamentos do Tesouro farão o PIB crescer. O discurso da austeridade fiscal também não é condizente com as medidas em série tomadas pela presidente Dilma para estimular o consumo. Na semana passada, ela lançou mais um programa de crédito subsidiado pelo Tesouro — destinado às famílias beneficiadas pelo Programa Minha Casa Minha Vida comprarem móveis e eletrodomésticos. Enquanto a reeleição estiver na mira prioritária do Planalto, o mais provável é que Dilma continue a se negar a beijar a cruz de um ajuste fiscal firme, a cada dia mais necessário para reequilibrar a economia brasileira.

Carlos Brickmann: Quem paga a conta da baderna. E um governo que nem precisa de oposição


"Nosso Governo é assim mesmo. Ele constroi, investe, anuncia, cobra, não paga, protesta e paralisa" -- a Petrobras que o diga!
"Nosso Governo é assim mesmo. Ele constroi, investe, anuncia, cobra, não paga, protesta e paralisa" -- a Petrobras que o diga!" (Foto: Vanderlei Almeida / AFP)
QUEM PAGA A CONTA
O Movimento Passe Livre foi criado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2005 – promovido, como de hábito, com dinheiro público. O endereço eletrônico do Movimento pertence a uma ONG chamada Alquimídia.
Até a quinta-feira, o site da Alquimídia trazia os logotipos da Petrobras e do Ministério da Cultura.
O custo dos logos foi de pouco mais de R$ 750 mil.
Ah, Petrobras
O país está mudando.
Antes, o governo só atrapalhava a vida dos cidadãos; agora, está atrapalhando também a vida do próprio governo. A Procuradoria da Fazenda Nacional cancelou a certidão negativa de débitos da Petrobras, empresa controlada pelo governo.
Sem a certidão, a Petrobras não pode importar, nem exportar. Os débitos cobrados estão sendo contestados na Justiça, mas mesmo assim a Petrobras foi atingida. E não pode sequer fazer o depósito em juízo, já que a dívida cobrada é de R$ 7,5 bilhões.
Resumo do caso: entre 1999 e 2002, a Petrobras não recolheu imposto de renda sobre o pagamento de plataformas petrolíferas móveis. Foi autuada, contestou a autuação (considera indevida a cobrança), e desde 2003 a questão está na Justiça. E agora está em risco uma das maiores empresas do país. Mas nosso governo é assim mesmo. Ele constroi, investe, anuncia, cobra, não paga, protesta e paralisa.
Não precisa de oposição

Direitos e deveres, por Merval Pereira

a, O Globo

O país vive nos últimos dias situações de tensão de diversas origens que, misturadas à percepção crescente de pessimismo em relação ao futuro captada por pesquisas de opinião, podem levar a uma crise institucional de grave repercussão.
Não há ainda uma ligação direta entre os problemas econômicos que se avolumam e as manifestações nas ruas das principais cidades do país, como apressadamente alguns analistas estrangeiros registram.
Mas a insatisfação difusa que se revela pelas redes sociais e desemboca nas manifestações a pretexto de protestar contra o aumento das tarifas de ônibus, sem dúvida, serve à manipulação de atividades políticas de grupos radicais e anárquicos que não se sentem representados pelos partidos políticos do mainstream.
Existem diversos grupos de ativistas em ação pelas ruas, alguns ligados a partidos políticos, que escolhem temas variados para protestar “contra tudo isso que está aí”. Engana-se o governo Dilma se acha que pode tirar proveito político de um eventual desgaste do governador tucano de São Paulo Geraldo Alckmin na repressão aos manifestantes.
O teor de cartazes afirmando que “Nenhum partido nos representa” mostra que a intenção dos grupos mais organizados é minar a representatividade política tradicional, inclusive a do PT que, agora no governo, prova do veneno que utilizava contra seus adversários.
Se a polícia paulista certamente se excedeu nos confrontos de quinta-feira, como diversas imagens registraram, há também imagens suficientes para mostrar que entre os manifestantes havia os que foram às ruas para provocar o confronto.
Independentemente dos objetivos ainda não totalmente revelados dessas manifestações, uma coisa é certa: nos últimos dias o país está vivendo situações que mostram que é preciso definir os limites da atuação de cada um para que a balança dos direitos fique mais equilibrada com a dos deveres.
Afinal, que país queremos ser? A censura do politicamente correto, utilizada como instrumento de constrangimento político, acabou criando uma situação em que qualquer atitude de repressão oficial se transforma em autoritarismo.
Essa leniência com as ações marginais se reflete na violência urbana e transborda para os conflitos rurais em que fazendas são invadidas a pretexto da defesa de pretensos direitos indígenas ou em ações do MST, que não têm a rejeição de quem é pago para garantir a prevalência da lei. Pois não se soube recentemente de um comentário da presidente censurando o cumprimento de ordem judicial de reintegração de posse, em episódio que resultou na morte de um índio?
A presidente pelo menos desmentiu que houvesse feito tal comentário, indevidamente revelado por um assessor seu, mas não é de hoje que governadores e prefeitos recusam-se a cumprir mandatos judiciais mesmo diante de flagrantes ilegalidades cometidas. A destruição das plantações da Cutrale ainda está para ser punida, e já foi repetida pelo MST. E já houve tentativa do PT de aprovar legislação que previa uma negociação com o invasor para que o proprietário pudesse entrar na Justiça para reaver o que era seu.
No Brasil, os menores com 16 anos podem votar para escolher seus representantes, mas não podem ser condenados mesmo quando praticam crimes hediondos. E, previsivelmente, tornam-se "laranjas" de criminosos até a véspera de completar 18 anos para a execução de atos que ficarão impunes.Os indígenas são inimputáveis, e por isso podem invadir o plenário do Congresso ou caçar carpas nos lagos de Brasília com arco e flecha, mas também quer em todos os direitos do “homem branco”. E os protestos contra o aumento de 20 centavos na passagem dos ônibus são feitos com a incoerência dos anarquistas, a depredação de pontos de ônibus e queima de veículos que em teoria eles defendem.
O direito de cada um termina quando começa o do outro, a frase simplificadora das relações humanas define que as individualidades devem se submeter à coletividade. Precisamos no país, acima das divergências políticas e ideológicas, impor limites à ação de cada um para que a sociedade não fique com a sensação de insegurança que hoje já predomina.

16 de junho, por Luis Fernando Veríssimo


Hoje, 16 de junho, é o “Bloomsday”, um dia na vida de Leopold Bloom em Dublin, narrado por James Joyce no seu “Ulysses”.
Estive uma vez em Dublin. De certa maneira, conhecer Dublin é trair James Joyce. Stephen Dedalus, o herói autobiográfico de Joyce, precisou trocar a familiaridade de Dublin pelo silêncio e a sabedoria do exílio — “silence, exile and cunning” — para começar a forjar, na usina da sua alma, a consciência ainda por criar da sua raça, como anunciou, com típica grandiloquência irlandesa, no final de “Retrato do artista quando jovem”. Dedalus/Joyce voltou a Dublin na memória e a transformou num lugar mítico, uma das cidades chaves da literatura moderna, em “Ulysses” e “Finnegans wake”.
Mas você não chega à Dublin transfigurada de Joyce, chega em apenas outra capital do McMundo. O Rio Lifey, mesmo com uma simbólica lua cheia em cima, é apenas um rio que divide a cidade, não é o rio recorrente da vida que passa pelo Eden e deságua em si mesmo, ou Anna Livia Plurabelle, a mulher-rio, de “Finnegans wake”. Nem o homem sentado ao seu lado no “pub” é a condição humana incorporada na última versão do Leopold Bloom. Aliás, provavelmente é um turista alemão, nada mais longe da condição humana.
A cidade dá a devida atenção a Joyce. Há uma estátua dele numa rua central, um centro de estudos e um museu com seu nome e um Hotel Bloom (com um previsível “Molly Bar”, em homenagem à lânguida sra. Bloom, cujo “stream of consciousness” em “Ulysses” fez história literária e escândalo e levou o livro a ser proibido em vários países).

Estátua de James Joyce

Imagino que o dia 16 de junho em que se passa toda a ação de “Ulysses” seja comemorado de algum modo na cidade. Mas é impossível evitar a sensação de que Joyce representa para Dublin o mesmo problema que Freud representa para Viena.
São dois filhos complicados, com ideias e obras não facilmente reduzíveis para folhetos turísticos, e que têm pouco a ver com o espírito do lugar. Em Viena, o desconforto é maior. A Dublin mitificada de Joyce, afinal, não era um lugar lúgubre. Já Freud lembra tudo que a cidade da valsa e da torta de chocolate nem quer saber.
Mas a Dublin que a gente espera é a vista do exílio, o que quer dizer que chega-se lá para desconhecê-la. Depois de passar quatro dias em Dublin e gostar da sua jovialidade e alegre familiaridade, você se sente tentado a pedir desculpas a Joyce. Por confraternizar com o inimigo.

O outono da ignorância, por Ruth de Aquino

Revista Época

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RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
Até demorou. Não se dizia que os brasileiros eram passivos demais, sem consciência política? Um povo inebriado por futebol, Carnaval e cerveja, que só se aglomerava em show, bloco e passeata gay ou evangélica? Agora, uma fagulha, o aumento das tarifas de ônibus, incendiou multidões. São especialmente jovens. Como em qualquer lugar do mundo. Entre os que protestam pacificamente com flores na mão, há os vândalos que, rindo e xingando, depredam o patrimônio, quebram lojas, incendeiam ônibus. Alguma novidade? Sempre foi exatamente assim, em Paris, Londres, Buenos Aires ou Istambul.

Os excessos devem ser repudiados, os vândalos detidos. Mas a reação truculenta das tropas de choque e as declarações de prefeitos e governadores de todos os partidos mostram algo preocupante: o poder – no Brasil, como na Turquia – não faz a menor ideia de como coibir com eficácia protestos que resvalem para a violência. Policiais e políticos igualam-se aos arruaceiros na ignorância, tornam-se delinquentes por trás de armaduras e gravatas, tacham de ilegítimas todas as manifestações, não param para escutar, entender ou negociar. O resultado é este: cidadãos encurralados na volta do trabalho, crianças atemorizadas. Os jornalistas são feridos pela polícia com balas de borracha, bombas de gás e spray de pimenta nos olhos. São coagidos e xingados por jovens mascarados e desinformados.

Os preços sobem, a inflação está em alta, os impostos absurdos não revertem em saúde, moradia, transporte e educação para a população, os empregos para a juventude começam a minguar, as empresas demitem em massa sem repor vagas. A presidente Dilma diz que a economia está sob controle. A farra nos Três Poderes continua. Ninguém aperta o cinto de couro em Brasília. O noticiário continua coalhado de mordomias no Legislativo, Judiciário e Executivo.
No Brasil, o poder não faz
a menor ideia de como coibir protestos que resvalem
para a violência 
O jornalista Zuenir Ventura um dia cunhou a expressão Cidade Partida para se referir à divisão entre asfalto e morro, no Rio de Janeiro. Hoje, está claro que vivemos num País Partido. O Brasil dos que produzem e trabalham quase cinco meses só para pagar impostos... e o Brasil dos que mamam nas tetas do Estado, com aposentadorias vitalícias polpudas e múltiplas, e ainda têm a cara de pau de discutir o rombo da Previdência. É corrupção, nepotismo, promiscuidade, formação de quadrilha nas altas esferas, desmoralização dos sindicatos que se lambuzam com o melado federal. A casta superior do País Partido insiste em ignorar o sentimento de vulnerabilidade da população assalariada.

Com a ditadura, o Brasil se desacostumou a conviver com manifestações e greves. Tudo vira sinônimo de anarquia. Estava em Londres em 1979, no “winter of discontent”, o inverno da insatisfação, que encheu a cidade de lixo e mau cheiro e derrubou os trabalhistas, abrindo o caminho para Margaret Thatcher. Trafalgar Square equivale simbolicamente à Praça Taksim, de Istambul – mas com os bobbies (policiais ingleses) protegendo os manifestantes.

Estava em Paris no outono de 2005, quando jovens da banlieue (a periferia) invadiram a Rive Gauche e saíram quebrando tudo, em protesto contra a situação de jovens imigrantes nos subúrbios. Foram 19 noites de distúrbios na França, 9 mil carros queimados, 3 mil jovens presos. Essa revolta saiu de controle. A “manif” já faz parte da cultura parisiense – quase como a praia no Rio de Janeiro e o restaurante em São Paulo. Não há fim de semana em que avenidas não sejam bloqueadas por protestos. As tropas de choque se organizam, com o objetivo de garantir a passeata, e não de fomentar a violência.

No Brasil, o Movimento do Passe Livre é o estopim, ou a parte visível de um descontentamento que não pode ser minimizado. O péssimo serviço de ônibus, metrôs e trens, aliado a aumentos nas passagens, é, sim, revoltante. Ouvir de Sérgio Cabral, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad que os protestos “têm motivação política” causa risos. É lógico que protestos sejam políticos. Não existe crime nisso. Ouvir das autoridades que os manifestantes são mauricinhos causa desconforto. É preciso ser prostituta para defender os direitos da classe nas ruas? É preciso ser povão para protestar contra a indignidade dos trens?

Torço para que os manifestantes expulsem de suas alas os marginais que aterrorizam exatamente aqueles que mais se servem do transporte público. Espero que os governos não mandem às ruas policiais despreparados, brutamontes e enraivecidos, que atacam pelo prazer da repressão. “Baderna é inaceitável”, diz Alckmin. Concordo. Mas os piores baderneiros são os armados pelo Estado. Deslizes policiais e insensibilidade governamental podem nos lançar ao caos.

HUMOR- A arte de Antonio Lucena



Coisa do demônio, por Mary Zaidan


Em qualquer atividade e para qualquer um, perder uma oportunidade é deixar passar uma chance que poderia ser única.
Na política isso pode ser fatal. Situação, oposição e até os que não têm cheiro tentam se aproveitar ao máximo quando elas surgem. Absolutamente legítimo.
Mas, não raro, oportunidades acabam por irrigar canteiros de oportunistas - gente que rouba, que vende voto, que leiloa o mandato. E de oportunistas ideológicos - aqueles que em público xingam o demônio e que entre quatro paredes com ele se confraternizam.
O discurso do presidente do PT deputado Rui Falcão, na quinta-feira, em Curitiba, em mais uma comemoração pelos 10 anos de invenção do Brasil, é um exemplo acabado disso. “São quatro grandes monopólios ou oligopólios que urge desmontar: o monopólio do dinheiro, controlado pelo capital financeiro; o monopólio da terra, em mãos dos latifundiários que se opõem à reforma agrária; o monopólio do voto, garantido pelo financiamento privado e o poder econômico; e o monopólio da opinião e da informação, dominado pelos barões da mídia”, disparou Falcão.

Rui Falcão, presidente do PT

Uma fala inflamada para alegrar a militância e fazer bonito frente ao ex-presidente Lula e à presidente Dilma Rousseff, estrelas maiores do encontro.
Nela, ele xinga os demônios, cospe no prato em que come e esconde os conchavos que há anos sustentam o PT.
Que monopólio do dinheiro? O que está concentrado nas mãos de empreiteiros – os mesmos para os quais Lula tem sido garoto propaganda? Dos banqueiros aliados que lucram ano a ano e ainda fazem transações espúrias com o partido, como o BMG do mensalão?
O monopólio da terra abriga o agronegócio, setor que cresceu 9,7%, evitando o completo desastre do já tão magro PIB de 0,6% do primeiro trimestre. É com esse oligopólio do capeta, e com a representante dele – senadora Kátia Abreu (PSD-TO) –, que Dilma conta.
O monopólio do voto? O maldito dinheiro privado que abarrota o caixa oficial e o caixa 2 confesso das campanhas do PT, as mais caras desde 2004, ano da primeira eleição depois que Lula chegou ao poder?
Por fim, os barões da mídia. Como se o incômodo fosse com os donos da mídia, com quem governos sempre se compõem. A pedra no sapato é o jornalismo - classificado por Dilma como “terrorismo informativo” - e os jornalistas, “vendedores” ou “profetas do caos”. Gente que ousa relatar que a inflação bateu no teto da meta, que mostra erros de gestão, gastos a rodo, obras de infraestrutura caras e em passo de tartaruga; desacertos e improvisações na política econômica e fiscal.
O problema são esses diabos que não batem ponto e não estão à venda.

Mary Zaidan é jornalista. Trabalhou nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, em Brasília. Foi assessora de imprensa do governador Mario Covas em duas campanhas e ao longo de todo o seu período no Palácio dos Bandeirantes. Há cinco anos coordena o atendimento da área pública da agência 'Lu Fernandes Comunicação e Imprensa'. Escreve aqui aos domingos. @maryzaidan

As luzes noturnas de Moacyr Félix


 O editor, escritor e poeta carioca Moacyr Félix de Oliveira (1926-2005) mostra no “Poema Quase Explicação” como as luzes noturnas desenham o mundo que habitamos. 
                                                                                                                             
POEMA QUASE EXPLICAÇÃO                
Moacyr Félix
Luzes cortaram mais uma vez a noite básica
e desenharam o mundo em que vivemos.
E as estrelas derramaram pedra e cal
e construiram em cada olhar muralhas
onde fonte magra pinga sol e lua
- e o relógio é um deus cantando as horas
horas de pedra e cal, prontas para o nada.
Simplificado como uma lágrima
cruzaste a tua ponte de meninos mortos:
não mais o refletido caminhar
de teus passos na noite iluminada,
mas o descer com os olhos a ladeira
e deixá-los no cárcere sem portas
onde os ratos e os anjos se devoram.
Impassível como um tronco de árvore, onde
os homens gravam a canivete o que calaram.

Um sinal foi dado ao novos ladrões do País


Francisco Bendl
O julgamento do mensalão foi, a meu ver, um aviso do Poder Judiciário ao Legislativo que não iria permitir que o lodaçal onde este se encontra respingasse nos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Mesmo havendo julgadores francamente contrários à forma como se processaram as sessões abertas ao público, não deixaram de condenar os mensaleiros, diante da gravidade do plano em manter o PT no poder indefinidamente e muitos de seus partidários locupletarem-se ilicitamente!
Há limites a serem obedecidos nos meandros e bastidores de nossas instituições que devem ser observados, caso contrário um poder se lança sobre o outro, de modo a fingir que não somos um País totalmente corrupto e inconfiável, principalmente entre aqueles que são os guardiões de nossa Constituição.
As cortinas entreabertas do Congresso e do Supremo, lamentavelmente, deixam transparecer que a preocupação jamais foi com o povo e o Brasil, mas com suas imagens pessoais e manutenção da máquina poderosa dos poderes a esmagar quem se aventura em colocá-las em cheque.
Pelo menos o sinal foi dado aos novos ladrões do País ou planejadores que desejarem se perpetuar no poder de forma desonesta e tão às claras como foi o mensalão.
Um pouco menos de ganância não faz mal a ninguém, e não levará altos dirigentes partidários para o banco dos réus.

Livre pensar é só pensar (Millôr Fernandes)


Quem são os manifestantes que pararam as grandes cidades do país


De onde vêm, o que querem e como agem os jovens que foram às ruas protestar contra o aumento das passagens do transporte público

ALBERTO BOMBIG E VINÍCIUS GORCZESKI (TEXTO), IGNACIO ARONOVICH (FOTOS)

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Participantes do protesto contra o aumento das tarifas no transporte público de São Paulo (Foto: ÉPOCA)
>>Este texto faz parte da edição de ÉPOCA desta semana. Na revista que chega às bancas no fim de semana, saiba mais sobre esses jovens.
Quinta-feira à noite na cidade de São Paulo. Bares, restaurantes e casas noturnas costumam fazer de alguns bairros paulistanos referências mundiais de entretenimento noturno, numa prova de que a capital paulista não dorme. Quando o paulistano não trabalha, está se divertindo. Tal organismo pulsante de luz e vida tem uma medula, a Avenida Paulista. Às 22 horas da última quinta-feira, dia 13, o mais conhecido cordão de asfalto da cidade estava silencioso, tomado por uma fina névoa de gás lacrimogêneo. Como no início do século passado, cavalos percorriam a via pública em galope desabalado. Talvez como sinal dos tempos, os animais eram comandados por integrantes do Regimento de Cavalaria 9 de Julho da Polícia Militar. Junto dos batalhões de choque, da Força Tática e da Rota, a cavalaria expulsava quem tentasse passar pela avenida. A Paulista se transformara numa zona militarizada. A PM reafirmava sua autoridade, após umviolento confronto com militantes do Movimento Passe Livre (MPL), que fazia seu quarto protesto contra o aumento da passagem de ônibus na cidade neste mês.
Capa - Edição 786 (Foto: ÉPOCA)
Os manifestantes, jovens em sua maioria, haviam chegado à Paulista por volta das 21 horas em três grupos – pelas ruas Augusta, Haddock Lobo e Bela Cintra. Vinham do centro de São Paulo, empunhando cartazes contra a elevação de R$ 3 para R$ 3,20 nas tarifas de transporte público. Como se comemorassem a conquista de campeonato de seu time do coração, cena comum para o local, entoavam ataques ao prefeito Fernando Haddad (PT), ele mesmo um militante estudantil em seus tempos de aluno de Direito na Universidade de São Paulo, nos anos 1980: “Dança, Haddad, dança aqui até o chão; aqui é o povo unido contra o aumento do busão”. Motoristas e pedestres assustados tentavam correr dos manifestantes. Carros pegavam a contramão na movimentada avenida, em sinal de pânico. Dois dias antes, outro protesto deixara um rastro de destruição, com estações de metrô e pontos de ônibus depredados – além de agências bancárias.  
Pouco antes do protesto de quinta-feira, a Polícia Militar de São Paulo, subordinada ao governador Geraldo Alckmin (PSDB), decidira que, em hipótese alguma, permitiria que o protesto chegasse mais uma vez à Paulista. “Eles (manifestantes) tinham concordado com esse entendimento”, disse Alckmin ao explicar a ação violenta de policiais para interromper o protesto. Se concordaram, mudaram de opinião. A presença na Paulista foi claramente definida por integrantes do movimento como um objetivo a atingir. Alckmin tomou a decisão de ser duro na repressão em comum acordo com Haddad e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, numa rara união entre autoridades tucanas e petistas. Juntos, eles também decidiram não recuar em relação ao novo preço da tarifa de transporte, implantado no último dia 2 e válido para ônibus, metrô e trens da capital. A inusitada parceria dos adversários políticos é um sinal da surpreendente força adquirida pelos protestos e seus organizadores, o Movimento Passe Livre. 
Criado em 2005, por jovens num acampamento do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o MPL se diz independente de partidos políticos – mas se escora em alguns. Organiza-se por meio de redes sociais na internet, e alguns de seus membros defendem princípios anarquistas. Dizem lutar por transporte público gratuito e de qualidade para a população. Uma das principais bandeiras é a migração do sistema de transporte “privado” para um sistema gerido diretamente pelo Estado, com a garantia de acesso universal a qualquer cidadão, por meio do “passe livre” – o fim de cobrança de tarifa.
O apelo das autoridades para que suas reivindicações sejam apresentadas de modo pacífico, pelos canais democráticos tradicionais, não surtiu efeito até agora. O ativismo do MPL envolve ação direta, na rua. “A única maneira é parar o trânsito”, diz a estudante de letras da Universidade de São Paulo (USP) Raquel Alves, de 20 anos, militante do MPL. “Infelizmente, o vandalismo e a violência são necessários, para que apareça na mídia. Se saíssemos em avenidas gritando musiquinha, ninguém prestaria atenção.”
O MPL se inspira nos movimentos de jovens que nos últimos anos tomaram espaços públicos no Oriente Médio, na Europa e nos Estados Unidos. A ampla maioria dos militantes já nasceu num regime democrático, portanto não precisa lutar pela democracia, como os militantes da Primavera Árabe. Assemelham-se mais aos americanos do Occupy Wall Street ou aos envolvidos nos tumultos que marcaram capitais europeias, como Londres ou Madri em 2011. Todos protestam em meio ao que chamam de “crise do capitalismo”.
O antropólogo anarquista David Graeber, um ex-professor da Universidade Yale que se transformou em guru dessa juventude, afirma que o Occupy Wall Street se caracterizava pela recusa de lideranças tradicionais. Por oposição a partidos políticos ou organizações hierarquizadas – chamadas, no jargão dos ativistas, de “verticais” –, ele postulava um movimento sem hierarquia – “horizontal”. O protesto começou num pequeno parque no distrito financeiro de Manhattan e chegou a mobilizar milhares de pessoas que, inicialmente, culpavam o sistema financeiro pela crise econômica. Protestos eram marcados pela internet. Decisões eram tomadas em assembleias. Havia liberais e todo tipo de esquerdista. Analistas viram no Occupy Wall Street uma espécie de ressurgimento de ideais anárquicos, tanto na forma de organização como na rejeição às instituições. Embora seja diferente na forma, o MPL guarda semelhanças, na atitude, com essa nova linhagem de ativistas do século XXI. “Os jovens não estão apáticos como em décadas anteriores”, diz Gabriel Medina, coordenador de Juventude da prefeitura de São Paulo. Ex-coordenador da Juventude do PT, até há pouco tempo próximo ao MPL. 
O aumento das passagens em São Paulo e no Rio de Janeiro deveria ter acontecido no início do ano. Foi adiado seis meses, para atender a um pedido da presidente Dilma Rousseff, preocupada com a alta dos preços. Quando veio, ficou abaixo da inflação. Desde o aumento da tarifa de 2011, a inflação foi de 15,5%, o que justificaria um aumento maior que os 6,7% de São Paulo. Desde 2003, a inflação acumula alta de 81,7% – ante 88,2% de aumento da tarifa em São Paulo e 182,5% no salário mínimo.
Os números não sensibilizaram o MPL, cuja cartilha de protestos mistura técnicas das recentes ocupações no exterior a preceitos clássicos de guerrilha urbana. Entre os manifestantes presos pela PM na última semana, alguns portavam coquetéis molotovs e até facas. “Fechar as ruas com fogueiras e barricadas não fomos nós que inventamos”, disse a ÉPOCA o manifestante Marcelo (nome fictício). “Somos de um grupo de anarquistas e punks e pegamos carona para protestar contra tudo o que está aí”, afirmou mais tarde, logo após depredar um ônibus. 

Os integrantes do MPL negam ter líderes. Planejar os protestos e falar com a imprensa são funções restritas a um pequeno grupo, que não revela onde se reúne. “É mais presencialmente do que pela internet”, diz Mayara. As decisões centrais são repassadas aos demais e divulgadas por meio de redes sociais na internet. Apesar de se dizer apartidários, vários de seus adeptos do MPL defendem ideias revolucionárias e de esquerda. Na última manifestação, havia dezenas de representantes de partidos políticos, como PCO, PSTU ou PSOL. 
A passeata de quinta-feira partiu do Theatro Municipal, no centro histórico paulistano. A organização estava sob a liderança de Mayara Longo Vivian, de 21 anos, uma estudante de geografia da USP. Ela usava três celulares ao mesmo tempo para definir os rumos do protesto. ÉPOCA testemunhou Mayara receber uma notícia: o grupo decidira seguir até o Parque do Ibirapuera, em vez de encerrar o protesto no local definido com a PM: a Praça Roosevelt. “Nós (o MPL) somos cerca de 15 pessoas. Não temos controle de tudo. Como estava pacífico, percebemos que daria para ir até lá (Ibirapuera)”, disse Mayara, um dia depois do protesto. Não deu. Após uma frustrada tentativa de negociação com a PM, a tropa de choque lançou bombas de efeito moral e gás lacrimongêneo. Os confrontos que se seguiram deixaram dezenas de feridos, entre eles jornalistas, atingidos por bombas e balas de borracha lançadas por policiais.  
Na quinta-feira, ações semelhantes tomaram os centros do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. No Rio, o elo com o MPL é feito por meio da central sindical Conlutas, ligada ao PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado). Ela patrocina greves e tem dado dor de cabeça a petistas, tucanos e peemedebistas. O PSTU ajudou a convocar o protesto no centro do Rio, que tomou a avenida Rio Branco. Os manifestantes gritavam slogans contra o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes, do PMDB. O governador Alckmin diz não acreditar na independência do MPL. “É uma minoria, que faz trabalho político.”
Até a semana passada, o Palácio do Planalto pouco sabia sobre o MPL. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não antecipara à Presidência da República que poderiam ocorrer novas manifestações, muito menos com tamanho grau de virulência. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, determinou que a Polícia Federal acompanhasse o caso. A presidente Dilma preferiu ficar distante. O MPL promete mais barulho. Se suas ações não forem motivadas apenas pelo aumento das passagens de ônibus, ela talvez tenha de rever sua decisão.