Em entrevista à Folha, o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), relacionou a decisão da Justiça italiana de negar a extradição de Henrique Pizzolato ao caso "vexaminoso" de Cesare Battisti.
Pode ser troco. O Estado brasileiro reconheceu em Battisti a condição de perseguido político, vítima de julgamento injusto na Itália, um país democrático. Agora, a Itália declara a desumanidade do sistema penitenciário do Brasil, um país democrático, afirmando que a entrega de Pizzolato poderia expô-lo a tratamento degradante.
O precedente é incômodo: expõe ao mundo uma das marcas da barbárie brasileira -apesar dos esforços oficiais para garantir que Pizzolato, diferentemente dos presos em geral, seria bem tratado. Se a moda pega, o Brasil terá dificuldades para alcançar criminosos refugiados no exterior.
Não há prisões humanitárias. A degradação moral é inerente ao encarceramento. Dostoiévski trata disso em "Recordações da Casa dos Mortos". É como escravidão: "bem tratado" ou submetido ao pelourinho, o escravo será sempre escravo.
"Bem tratado" ou submetido a graves violações na sua integridade física e psíquica, o preso estará sujeito a um regime de vida invariavelmente embrutecido e corrupto. É assim em qualquer lugar, inclusive em países ricos, como Estados Unidos, Alemanha, Japão e Itália.
Se a pena de prisão surgiu como sinal de progresso humanitário, hoje não há controvérsias. É uma máquina de triturar pessoas. Não regenera ninguém. Por isso, diante da "impossibilidade" de se eliminar a prisão do horizonte punitivo, cada vez mais se buscam soluções alternativas para condenados que, fora do cárcere, não representariam perigo concreto para a sociedade. É inútil manter atrás das grades quem lá não precisa estar.
Além de maus-tratos, superlotação, tortura silenciosa, motins e decapitações, um dos motivos do mal-estar prisional brasileiro é a negação sistemática de direitos.
As varas das execuções criminais não funcionam. Em parte, pela falta de meios para gerenciamento eficiente de um sistema que abriga mais de meio milhão de pessoas, o que se agrava pelo deficit de defensores. Em parte, também pela omissão de juízes e promotores, que atuam como se fossem agentes da segurança pública, retardando ou negando aquilo que a lei estabelece.
Como exigir respeito à lei por parte de quem a transgrediu no passado se autoridades que decidem seu futuro também a desrespeitam?
É comum a espera de mais de ano por decisão singela de progressão de regime (do fechado para o semiaberto, do semiaberto para o aberto).
José Dirceu obteve o direito de progredir para o regime aberto (prisão domiciliar) e a decisão do ministro Barroso, do STF, saiu apenas nove dias depois do pedido: o processo ainda tramitou pela Procuradoria da República, que rapidamente concordou com o benefício. Não é o padrão de tempo da Justiça brasileira, nem mesmo do STF, espraiando-se um sentimento de impunidade e privilégio.
Dirceu deveria ser tratado como são tratados os presos? Ou, ao contrário, os presos deveriam ser tratados como os réus do mensalão em matéria de execução penal?
Que esse padrão de Justiça se irradie pelo país. Seria um bom começo.
lfcarvalhofilho@uol.com.br
Pode ser troco. O Estado brasileiro reconheceu em Battisti a condição de perseguido político, vítima de julgamento injusto na Itália, um país democrático. Agora, a Itália declara a desumanidade do sistema penitenciário do Brasil, um país democrático, afirmando que a entrega de Pizzolato poderia expô-lo a tratamento degradante.
O precedente é incômodo: expõe ao mundo uma das marcas da barbárie brasileira -apesar dos esforços oficiais para garantir que Pizzolato, diferentemente dos presos em geral, seria bem tratado. Se a moda pega, o Brasil terá dificuldades para alcançar criminosos refugiados no exterior.
Não há prisões humanitárias. A degradação moral é inerente ao encarceramento. Dostoiévski trata disso em "Recordações da Casa dos Mortos". É como escravidão: "bem tratado" ou submetido ao pelourinho, o escravo será sempre escravo.
"Bem tratado" ou submetido a graves violações na sua integridade física e psíquica, o preso estará sujeito a um regime de vida invariavelmente embrutecido e corrupto. É assim em qualquer lugar, inclusive em países ricos, como Estados Unidos, Alemanha, Japão e Itália.
Se a pena de prisão surgiu como sinal de progresso humanitário, hoje não há controvérsias. É uma máquina de triturar pessoas. Não regenera ninguém. Por isso, diante da "impossibilidade" de se eliminar a prisão do horizonte punitivo, cada vez mais se buscam soluções alternativas para condenados que, fora do cárcere, não representariam perigo concreto para a sociedade. É inútil manter atrás das grades quem lá não precisa estar.
Além de maus-tratos, superlotação, tortura silenciosa, motins e decapitações, um dos motivos do mal-estar prisional brasileiro é a negação sistemática de direitos.
As varas das execuções criminais não funcionam. Em parte, pela falta de meios para gerenciamento eficiente de um sistema que abriga mais de meio milhão de pessoas, o que se agrava pelo deficit de defensores. Em parte, também pela omissão de juízes e promotores, que atuam como se fossem agentes da segurança pública, retardando ou negando aquilo que a lei estabelece.
Como exigir respeito à lei por parte de quem a transgrediu no passado se autoridades que decidem seu futuro também a desrespeitam?
É comum a espera de mais de ano por decisão singela de progressão de regime (do fechado para o semiaberto, do semiaberto para o aberto).
José Dirceu obteve o direito de progredir para o regime aberto (prisão domiciliar) e a decisão do ministro Barroso, do STF, saiu apenas nove dias depois do pedido: o processo ainda tramitou pela Procuradoria da República, que rapidamente concordou com o benefício. Não é o padrão de tempo da Justiça brasileira, nem mesmo do STF, espraiando-se um sentimento de impunidade e privilégio.
Dirceu deveria ser tratado como são tratados os presos? Ou, ao contrário, os presos deveriam ser tratados como os réus do mensalão em matéria de execução penal?
Que esse padrão de Justiça se irradie pelo país. Seria um bom começo.
lfcarvalhofilho@uol.com.br
Luís Francisco Carvalho Filho, 56, é advogado criminal. Formado pela Faculdade de Direito da USP. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95 (2001 - 2004) e diretor da Biblioteca Mário de Andrade (2005-2008). Articulista da Folha, escreve para o jornal desde 1985