É imperdível este artigo que Enrique Vila-Matas publicou no “Babelia” em fevereiro deste ano – e que eu quase perdi. Resgatei-o por acaso, e como não se trata de matéria que envelheça tão facilmente, compartilho aqui o relato mordaz sobre a polêmica entre dois gigantes das artes do século 20, o escritor alemão Thomas Mann e o compositor austríaco Arnold Schoenberg, com o auxílio luxuoso de Theodor Adorno no papel de intermediário. Segue um breve resumo da confusão, que espero que funcione como isca e não como substituto da leitura do texto em espanhol.
Ao escrever, já em seu exílio americano, o romance “Doutor Fausto”, que lançaria em 1947, Mann sentiu que esbarrava nos limites de seus conhecimentos musicais. Estes não eram pequenos, mas ele precisava dar ao personagem do compositor Adrian Leverkühn a capacidade de voos mais altos, fazer dele um revolucionário pensador da música. Em seu socorro veio um solícito Adorno, compatriota mais jovem – apresentado como “adulador, quase servil, admirador ardente” de Mann – que tratou de lhe fornecer competentes resumos das teorias de Schoenberg, o criador do dodecafonismo.
Pois bem: o escritor teria enxertado então em seu romance esses resumos, sem mudar quase nada – algo que ocorreu, é bom frisar, algumas décadas antes de surgir a ideia do direito ao sampleamento universal. O próprio Adorno não parece ter se incomodado com isso, mas Schoenberg não achou graça nenhuma. Começou então uma rumorosa polêmica que terminaria por garantir ao compositor um crédito nas edições futuras de “Doutor Fausto”, e a Mann uma ferida no vasto ego. Eis a conclusão de Vila-Matas:
Às vezes, quando penso em todo esse velho assunto da polêmica sobre aquele plágio, acredito me dar conta de que, enquanto Mann se propunha em seu romance a situar o momento em que se deu a ruptura entre arte e beleza (ou, melhor dizendo, o fim da Grande Arte, com a emergência do gosto popular ou, o que vinha a dar no mesmo, o fim do mundo que olhava para Deus e não para o homem), o próprio Mann, com seu doloroso episódio de luta com o vizinho californiano Schoenberg, ilustrou à perfeição – na vida real, o que é mais assombroso – o fim dos romancistas todo-poderosos, aqueles que, como Deus em um tempo que hoje só existe na memória, acreditavam ser tudo propriedade sua, inclusive as partituras musicais do vizinho, que o mordomo sabia resumir com perfeição.
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