Talleyrand, célebre chanceler de Napoleão, ao censurar a dinastia dos Bourbons, dizia que eles nunca aprendiam e nunca esqueciam. Para evitar que a sociedade brasileira seja estigmatizada por esse conceito, convém que sejam extraídas algumas lições do julgamento, embora inconcluso, do mensalão.
Sem lugar a dúvidas, esse episódio é um dos mais importantes acontecimentos da nossa Justiça. Pela primeira vez, estão sendo julgados, simultaneamente, importantes próceres políticos, banqueiros, profissionais liberais e, para usar uma qualificação utilizada pela defesa, mequetrefes. Cada réu com sua pena ou juízo absolutório.
O julgamento está sendo enriquecido por memoráveis manifestações sobre a Ética e a República, como um sopro alentador em favor da restauração de valores que vêm sendo vilipendiados seguidamente e comprometem a formação das gerações mais jovens.
É sagrado o direito de ficar inconformado com as sentenças (jus sperniandi) ou, em nome da liberdade de expressão, criticá-las.
Não é aceitável, contudo, proferir invectivas contra a convicção dos magistrados, porque, além da possibilidade de enquadramento por crimes contra a honra, constitui uma afronta ao Judiciário.
As divergências nos entendimentos dos magistrados, malgrado os dispensáveis preciosismos e galimatias, devem ser vistas como prova de vitalidade da instituição. O dissenso é mais rico, como ensinamento, que o consenso. A verdade tem muitas faces.
O julgamento, em virtude da transmissão ao vivo, expôs ao público conceitos antes confinados aos recintos dos tribunais e pôde arrostar a velha tese que entendia a condenação como algo destinado a pobre, preto e prostituta, segundo a perspicaz observação de um magistrado mineiro.
Dirão alguns que outras pessoas cometeram crimes idênticos ou assemelhados. É verdade. Que se julguem todos, então! O mensalão deve ser tido não como uma exceção, mas como um precedente.
Rejubilo-me com a repulsa da Corte ao caixa dois, como crime em si ou manobra diversionista para dissimular a prática de outros crimes. A alegação dessa malfadada “tese”, caso fosse razoável, deveria ter trilhado os caminhos da modéstia e da contrição, sem manifestações de entusiasmada esperteza.
O Supremo Tribunal Federal não devia, contudo, ser onerado com um longo julgamento de um volumoso processo criminal, de forma estranha à sua vocação de elucidar controvérsias constitucionais e em detrimento da apreciação de relevantes demandas.
Na explicação desse fato se encontra o instituto do foro privilegiado, que pretendeu (ainda que não se diga abertamente) evitar o julgamento dos “condestáveis” da República pelos magistrados de primeira instância, na presunção de que ocorreriam excessos.
É razoável que determinadas autoridades tenham prerrogativas no atendimento de requisições judiciais. Eventuais excessos de magistrados, por sua vez, devem ser corrigidos por uma adequada lei de abuso de autoridade e por uma correição efetiva.
O privilégio de foro, entretanto, é deplorável e acarreta, como se pôde ver no mensalão, julgamento em instância única e sobrecarga de trabalhos para o Supremo. É privilégio na pior acepção da palavra, a despeito de, no caso, ter tido um efeito inesperado.
A metodologia dos julgamentos revelou-se modorrenta, repetitiva e arcaica. O cansaço visível na face de alguns Ministros é apenas consequência de sua condição humana. Um laudo sobre determinada instituição financeira foi lido mais de uma dúzia de vezes.
Existe alguém capaz de ouvir atentamente um relatório de mais de mil páginas? Por que reproduzir, literalmente, depoimentos contidos nos autos? Não bastaria uma ilação referenciada aos autos? Por que dispensar a utilização de modernos meios de exposição que favoreçam a compreensão das intervenções orais? Qual a necessidade de um revisor? Seria para contraditar o Relator? Revisores deveriam ser todos que participam do julgamento.
A fixação das penas (dosimetria) deveria pautar-se pela concisão, sendo expressa em uma tabela, que conteria a pena-base e as circunstâncias, se for o caso, que a agravam.
Além disso, parece-me que, na determinação da pena, seria aconselhável adotar-se o voto médio, e não o modal, como bem aconselharia a ciência estatística no trato de situações análogas.
O julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro produzem controvérsias que revelam claramente as deficiências da legislação, agravadas por mudanças recentes, que podem resultar em sérios percalços para determinados profissionais (notadamente, advogados e contadores), ainda que não tenham tido participação no ciclo criminoso.
Não se sabe, ao certo, quando a lavagem de dinheiro é crime autônomo ou quando é mera continuidade do crime antecedente. Faz algum sentido incluir a sonegação de impostos (simulação) como crime antecedente da lavagem (dissimulação)? A legislação é claudicante e merece ser revista. Não há jurisprudência boa que salve uma lei ruim.
À margem desses comentários, não se pode desperdiçar, entretanto, a oportunidade de enfrentar as causas dos crimes que deram origem ao mensalão.
Na essência, tudo gravita em torno de questões políticas e eleitorais. A prevenção desse tipo de crime aponta para o reexame da legislação relativa às prestações de contas de candidatos e partidos políticos, nela incluída a obrigação de fiscalização sistemática pela Receita Federal, e as malsinadas “emendas parlamentares” – fonte inesgotável de corrupção e de abjetas barganhas políticas.
Se as causas não forem removidas, é inescapável que tenhamos novos mensalões no futuro, ainda que assumam novas denominações ou novos contornos. O chamado presidencialismo de coalizão ou de colisão, tanto faz, é terreno fértil para a corrupção.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal
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