terça-feira, 21 de agosto de 2012

Uma vez eu queria ser sefaradi. Não me perguntem por quê? Sei lá? Eu queria e ponto


  
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muiito legal esse texto explicativo em forma de depoimento de
Sérgio Feldman, que é doutor em História pela UFPR e professor de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, e ex-professor adjunto de História Antiga do Curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná.
(leiam ate o final!!!!!
)

Uma vez eu queria ser sefaradi. Não me perguntem por quê? Sei lá? Eu queria e ponto.

Aliás muitos membros das comunidades por onde passei me perguntavam se eu era sefaradi. Deixem-me explicar o que é sefaradi, pois temos leitores que não conhecem esta expressão. Sefarad é um dos nomes mais usuais para Espanha. Não a Espanha moderna, mas a Espanha antiga e medieval. Os judeus que descendem dos membros da comunidade judaica de origem espanhola foram denominados, desde então, como sefaradis. Eles foram expulsos da Espanha pelos reis católicos no mesmo ano em que Colombo saiu para sua primeira expedição às Américas (1492).

O termo Sefarad já aparece num profeta bíblico: Obadias. E no simbólico livro de Jonas, que é lido na oração vespertina do dia da Expiação (Iom Kipur), conta-se que o profeta quando intimado por D-us para profetizar contra os habitantes de Nínive, ficou receoso e queria escapar deu Seu alcance, fugindo de navio para Tarsis (em hebraico Tarshish). Acreditava que D-us só tinha poder na região de Canaã, e saindo das redondezas estaria livre. Onde ficava Tarsis? Na atual Catalunha, não muito longe da Barcelona de nossos dias. Era um “fim de mundo”, para onde o fugitivo estava se retirando. Uma colônia fenícia existia neste local. Pela segunda vez a Espanha aparece no texto bíblico. Isso pode significar algo?

I. Baer (historiador israelense) acredita que havia judeus na Hispania antiga, desde remotas eras. Há lapides muito antigas em hebraico que mostram que judeus habitavam na região nos primórdios da ocupação romana. Uma relação antiga unia os judeus e a Espanha (Hispania)
.
A relação sempre se manteve. O cancioneiro sefaradi está repleto de músicas e temas que mostram a antiga e intensa relação dos judeus com a Espanha.

Sefarad nasce na vida judaica com algumas tragédias iniciais. Os romanos não tardam a se converter ao Cristianismo. E antes da proteção imperial se consumar com o governo de Constantino o Grande (século 4 d.e.c), já havia leis que separavam judeus de cristãos. O concilio de Elvira (c. 307) proibia os cristãos de fazer ceias coletivas com os judeus, levar os rabinos e sábios para “benzerem” (abençoarem) seus campos e uma gama de relações sociais que aproximavam os judeus de seus vizinhos cristãos. Parece que havia boas relações já que faziam ceias e outras atividades juntos, mas a Igreja lança interditos.

A região da Península Ibérica foi invadida por vários povos bárbaros. Após um século, prevalecem os visigodos que não são católicos, mas professam uma heresia denominada ariana (não há relação direta com o arianismo dos séculos 19 e 20). Há uma aproximação entre hispano-romanos católicos e seus conquistadores visigodos-arianos. O resultado é a unidade sob a égide do cristianismo católico. Um rei, uma monarquia, uma religião. Este lema se repetirá como um “eco na história”, por várias vezes.

Esta unidade almejada fortalecia a monarquia ameaçada por uma nobreza revoltosa e por um processo de proto-feudalização. Para evitar o fracionamento da região, a Igreja e a monarquia se unem e buscam a unidade. O empecilho maior a esta unidade eram os não cristãos: pagãos e judeus. Isto sem falar dos grupos heréticos cristãos. O resultado desse processo foi a tentativa de conversão forçada dos judeus pelo rei Sisebuto (c. 616).

Nas décadas seguintes vemos o surgimento de novas leis repressoras. Mas se os judeus tiveram que optar pela conversão ou pela fuga, como se renovam as leis anti-judaicas? O que os estava reprimindo se haviam sido convertidos?

Há algumas hipóteses: a) Novos judeus imigraram após as conversões; b) os judeus batizados retornaram ao Judaísmo; c) Uma mistura das anteriores.

Isso burlava duas vezes a pressão cristã. Seria uma negação da validade do batismo. Se este era um sacramento não podia ser desfeito, pois era um ritual simbólico e sobrenatural e sem chance de ser retroagido. Fazê-lo era desacato e teria de ser punido. De 633 (data do IV Concílio de Toledo) a 711 a vida dos judeus sefaradis foi uma terrível perseguição, sucedida por conversões coletivas forçadas e restrições legais aos descendentes de “judeus” convertidos que mesmo se tornando cristãos, eram discriminados. Essa difícil fase se encerra com a invasão muçulmana na Península Ibérica e a queda do reino visigótico. Não tarda e se instala o califado: sua sede era em Damasco, mas a após a queda dos omíadas (califas de Damasco), viria surgir um emirado e depois um califado em Córdoba. O que isto significava para os judeus?

Os líderes muçulmanos eram muito mais tolerantes com os judeus nos três primeiros séculos do Islã. Essa atitude muda depois de três ou quatro séculos. Em principio, os muçulmanos eram cordiais com os judeus, a partir do início da expansão do Islã. Leis foram adotadas em favor das minorias denominadas os Povos do Livro: judeus e cristãos. Haviam sido iluminados por Alá através dos grandes profetas: Moisés (Mussa) e Jesus (Yeshu), os dois antecessores do último e maior iluminado Maomé (Muhamad). Utilizando-se de trechos selecionados do Corão (hoje a seleção é outra), os primeiros califas adotaram uma política de tolerância e de bom tratamento a seus súditos monoteístas: judeus e cristãos. É sempre estranho relatar num jornal judaico, que hoje se alimenta de notícias e fatos, tão complexos e tensos que envolvem judeus e árabes muçulmanos, que outrora houve uma agradável e profícua relação e convivência entre judeus e árabes nos primeiro séculos do Islã.

Esse período serviu de pano de fundo para certas novidades. Os árabes muçulmanos e muitos dos intelectuais convertidos pacificamente ao Islã (religião que se opunha às conversões forçadas de povos monoteístas), fizeram a tradução de manuscritos dos filósofos gregos: inicialmente Platão e num estágio posterior, de Aristóteles. Surgia a Falsafa, ou seja a versão árabe da filosofia clássica. O objetivo que se delineou foi comprovar a verdade da Revelação Corânica elaborada por Maomé, através da Razão e da filosofia. Em Bagdá se instalou um centro de debates que ordenou as discussões e elaborou sínteses entre a crença islâmica e a filosofia grega. Um dos termos usados é Kalam. 

Influenciados por tal debate surgem os sábios judeus que imbuídos de profunda fé e respeito a crenças judaicas tradicionais, elaboram sínteses e diálogos entre o judaísmo talmúdico e a filosofia grega. Isso não era novidade entre nós. O célebre Fílon (ou Filo), um sábio judeu de Alexandria, já o fizera antes do cristianismo surgir. Mas alguns séculos depois, temos algumas figuras de proa do judaísmo que se aproveitam desta nova discussão, renovam nossos pensamentos e dialogam com a Razão (na sua versão neo-platônica e depois na versão neo-aristotélica). Um dos expoentes orientais desta linha é o renomado sábio judeu egípcio denominado Saadia Gaon (pois foi gaon [espécie de líder espiritual] numa das academias babilônicas, em meados do século 10). Nos séculos seguintes esse diálogo e as discussões foram para Sefarad. Inicia-se na Sefarad ou Al Andaluz (Espanha muçulmana medieval) uma Era de Ouro do Judaísmo.

Num clima de tolerância das autoridades e num respeito pleno aos súditos infiéis de origem judaica (e cristã), os emires, califas ou pequenos reis de taifas permitiram autonomia, certas liberdades e uma imensa elaboração religiosa-cultural aos judeus sefaradis.

Sefarad será palco de poetas (e filósofos) como Shlomo ibn Gabirol e Judá HaLevi. De magníficos pensadores como Moshé e Abraão ibn Ezra. De um gênio como o incomparável Rambam Maimônides. A lista seria enorme se começasse a citar. Omiti de maneira consciente pelo menos duas dezenas de nomes de sábios e brilhantes pensadores. O leitor que conheça o tema me fará inúmeras observações e criticará omissões. Este não era meu objetivo: a apologia dos sábios sefaradis é ampla e já a fizeram antes de mim.

A lição que leio deste momento é a possibilidade do diálogo: o diálogo entre Oriente e Ocidente, entre judeus, cristãos e muçulmanos, entre as diversidades e as diferenças.
Utópico? Com certeza estou sendo utópico. Iludido e sonhador. Mas com que sonhar em nossos dias: com a classe política? Com a cretinice de lideranças internacionais? Ou com o fim das ideologias? O vazio que vivemos é um convite à busca de pseudo-valores como os dos skinheads ou dos “mauricinhos” hedonistas.

Buscar na história modelos e ideais é uma velha forma de utilização de certos momentos e personagens, como pano de fundo de valores e sonhos.

Os gregos, os romanos ou mesmo nós, judeus, já o fizemos. Todos criam seus heróis e seus modelos idealizados e idílicos.

O meu sonho eu tive andando sozinho pelas ruas de Toledo e de Córdoba em 1994. Eu entrava e saía de prédios e perambulava pelas ruelas e alamedas. Via em cada canto imagens de um passado, no qual judeus, muçulmanos e cristãos souberam pelejar, mas também dialogar e ser muito mais respeitosos com a diversidade. Sefarad ou Hispânia, ou al Andaluz, foi depois o palco de conversões forçadas de judeus e mouros, e da Inquisição. Nos séculos 11 e 12 penetram em Al Andaluz (ou Sefarad), mouros (muçulmanos do norte da África). Em duas levas sucessivas, ambas permeadas de fanatismo: os almorávidas e depois os almóades. Tudo se altera: há restrições, pressões diversas e até tentativas de conversões forçadas de súditos judeus.

Na seqüência os judeus migram para outros países muçulmanos. Um exemplo é a família de Maimônides que perambula pelo Marrocos e acaba se estabelecendo no Egito. Eram a primeira leva de exilados sefaraditas. Uma grande parte dos judeus migra para o Norte, para os reinos cristãos: Leão, Castela, Navarra, Aragão e Barcelona (ou Andaluzia). Mais tarde surge Portugal. Estes reinos precisam dos judeus e os recebem com regalias denominadas “privilégios”. Precisam de colonos e de administradores, comerciantes e artesãos. Por mais dois a três séculos, os judeus se integram e são tolerados pelos reis cristãos. Ocorre a Idade de Prata. Um período culturalmente inferior a Idade de Ouro, mas de relativa estabilidade e alguma dose de tolerância. Isso perdura até 1391. Inicia-se então o processo de conversões forçadas e pressão sobre os judeus nos reinos cristãos que já não os tem como fundamentais para sua expansão. Surgem os cristãos novos. Aproxima-se o triste período da Inquisição, e Sefarad passa a ser lembrada como o palco de autos de fé, fogueiras e terror. Mas não foi só isto, como já vimos.

Sefarad nos ofertou nos séculos 8 e 9 um modelo de convivência e diálogo, de tolerância e respeito. Ao passear pelas ruas de cidades como Tudela, Sevilha, Segóvia esbarro em memórias, sinais indeléveis de uma presença judaica em terras espanholas: Sefarad não se extingue com a expulsão em 1492, nem com os réus da inquisição sendo queimados em fogueiras e punidos em autos de fé: Sefarad se eterniza em seus filhos e na obra de gigantes do pensamento e da cultura.

E ainda tem quem chame a era medieval de era das Trevas...

 
Entenderam por que eu queira ser sefaradi? Pensem nisto!

(Sérgio Feldman é doutor em História pela UFPR e professor de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, e ex-professor adjunto de História Antiga do Curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná.)

Texto enviado por Thomas Presch ao site Pletz@le.
Transcrito do site Pletz@le.

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