Poucas vezes, se é que alguma vez nos quase 123 anos de história da República, o Supremo Tribunal Federal esteve tão no centro das atenções nacionais como nesse período em que, a partir do dia 2 passado, começou a julgar o processo do mensalão.
Diante da importância do tribunal e da polêmica que cercou várias de suas decisões — desde o famoso empate na votação da Lei da Ficha Limpa, no final de 2010, resultado depois desempatado com a integração doministro Luiz Fux à corte, até a legalização dos abortos de fetos anencéfalos –, muitos leitores deste blog questionaram, em comentários, se a atual forma de indicação de ministros do Supremo é a melhor: o presidente da República escolhe um nome, o Senado o analisa, vota e, aprovado pelo Senado, o ministro é empossado. A partir daí, ocupa o cargo até completar 70 anos de idade ou resolver, por alguma razão, se retirar antes disso.
Aliás, uma pergunta que envolve a atual forma de escolha figura em enquete na home page do site de VEJA.
O Senado não faz a lição de casa
Pode-se, é claro, questionar a atual forma de indicação, prevista na Constituição. Antes de mais nada, porém, é preciso dizer que, se houve ou há ministros que não estão à altura do cargo, segundo opinaram e continuam opinando muitos leitores, o principal problema está no Senado.
O Senado nunca faz a lição de casa, não exerce seus deveres constitucionais, não questiona com a necessária profundidade os nomes propostos e não recusa ninguém, jamais, em tempo algum — nem um nome medíocre, com currículo abaixo da crítica para o cargo, como é o caso do atual ministro Dias Toffoli.
Para que vocês tenham uma ideia do que isso significa, em toda a história da República, os senadores só disseram “não” a um único nome – e isso em 1893. Ou seja, há 119 anos!!!
Não estou defendendo a tese de que o Senado deve recusar ministros para mostrar serviço.
Não! O problema é que os senadores, na grande maioria, não se preparam para as sabatinas, não “apertam” os candidatos, não são rigorosos com seus currículos. A maior parte dos integrantes da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania — que deve sabatinar os indicados – divaga, perde tempo em discurseiras, derrama-se em elogios ao indicado, age como se estivesse num clube de compadres.
O único indicado nome recusado pelo Senado, e assim mesmo por razões exclusivamente políticas, sem nada a ter com suas qualificações, foi o de Cândido Barata Ribeiro, abolicionista e republicano inflamado, ex-prefeito do Rio de Janeiro, nomeado em 1893 pelo presidente Floriano Peixoto (1891-1894) – hoje nome da conhecida rua de Copacabana.
Iniciando triste tradição logo nos primeiros passos do país pós-monarquia, o “Marechal de Ferro” governou de forma autoritária, obtendo do Congresso a suspensão de seus próprios trabalhos durante a maior parte do mandato (1891-1894) e implantando o estado de sítio.
No final de seu governo, já enfraquecido e com o Congresso ressuscitado, o Senado vingou-se de Floriano, com base no fato de Barata Ribeiro, médico de formação mas com grande experiência na vida pública, supostamente não ser detentor de “notável saber e reputação”, conforme exigia a Constituição de 1891, em seu artigo 56.
Vejam bem, a Constituição não mencionava notório ou notável “saber jurídico”. Mesmo assim, Barata Ribeiro, plenamente qualificado para o posto, dançou. E só, nunca mais ocorreu algo semelhante.
Nos EUA o Senado, sim, cumpre seu papel, e já recusou 12 nomes
Só para termos uma comparação, nos Estados Unidos, cuja Constituição inventou a fórmula da indicação presidencial passando pelo crivo do Senado, as indicações do presidente da República ao Senado são por vezes discutidas durante meses, em longas e severas sessões da Comissão de Justiça e, depois, do plenário do Senado.
Os ministros da Suprema Corte são nove, e seu mandato é vitalício: só deixam o posto por morte, aposentadoria por iniciativa própria ou, descumprindo a Constituição, por impeachment.
Ao longo da história, doze nomes já foram recusados pelos senadores, dois deles mesmo havendo sido indicados por um presidente popularíssimo, Ronald Reagan (1981-1989) – o último em 1987, o jurista conservador Robert Bork.
Sem contar os casos em que, diante das dificuldades à aprovação antevistas pelo presidente ou o próprio indicado, este desiste da empreitada, como ocorreu em 2005 com a ex-conselheira presidencial Harriet Miers, proposta pelo presidente George W. Bush, o Bush filho.
O então presidente Lula não teve esse problema: todos os seus oito indicados para o Supremo passaram incólumes pelo Senado. Desses oito, um morreu (Menezes Direito) e outro se aposentou (Eros Grau).
A presidente Dilma, com menos de dois anos no Planalto, já designou dois ministros — Luiz Fux e Rosa Maria Weber — e ainda este ano deverá apontar mais três, nas vagas de Cezar Peluso e Ayres Britto, que se aposentarão por atingir a idade-limite de 70 anos, e de Celso de Mello, o decado do tribunal, que poderia permanecer mais cinco anos no Supremo, onde serve há 23 anos, mas decidiu solicitar aposentadoria.
Lula indicou mais nomes do que Getúlio, JK ou Sarney
O número atingido durante o lulalato, por enquanto, é um recorde entre os presidentes democráticos que nos governaram. José Sarney (1985-1990) chegou a 5 ministros. Seguem-se Juscelino Kubitschek (1956-1960) e Fernando Collor (1990-1992), com quatro. Getúlio Vargas designou 21 em seus dezenove anos no poder, nas duas passagens pelo Palácio do Catete, no Rio – mas só dois como presidente eleito pelo povo (1951-1954).
Não é brincadeira ser ministro do Supremo, conforme comentei em outro post. Vale repetir os argumentos ali expostos. O ministro é um poderoso ente do Estado brasileiro. Nenhum outro servidor público, eleito ou não, entre os milhões de União, Estados e municípios, é detentor de igual importância – exceto o presidente da República.
O poder de um ministro do Supremo
Junto com seus outros 10 colegas, ele decide diretamente sobre a vida de centenas de milhares de brasileiros, e suas decisões afetam todos os 195 milhões. Os ministros julgam com freqüência causas envolvendo bilhões de reais. Têm função vitalícia até os 70 anos. E resolvem, em última instância e sem apelação, o que está certo ou errado e o que pode ou não ser feito – inclusive pelo Congresso, pelo presidente, pelos governadores, pelos prefeitos e pelos demais tribunais –, à luz da Constituição.
A atual forma de indicação é democrática? Poderia ser aperfeiçoada?
Com toda essa importância, será que um ministro do Supremo deveria ser indicado na forma atual, livremente pelo presidente da República, obedecidas algumas poucas condições previstas na Constituição – ter mais de 35 e menos de 65 anos de idade, “notável saber jurídico e reputação ilibada”? Passando apenas pelo questionamento formal, amigável, superficialíssimo do Senado?
Muitos leitores deste blog questionam o ritual adotado pela Constituição.
Não apenas os visitantes deste blog que protestaram, mas muito mais gente não acha suficientemente democrático o processo de nomeação dos ministros do STF e defende seu aprimoramento: juristas, integrantes do próprio Judiciário, historiadores, deputados e senadores que, sim, incluem gente do PT.
Antes de chegar ao poder, políticos do PT, em várias oportunidades, questionaram a fórmula mal copiada dos EUA – mais uma, entre tantas – e pregaram algum tipo de mudança. Chegou-se a falar nisso durante a campanha de Lula em 2002, embora nenhuma proposta de modificação haja sido incluída no programa de governo do então candidato. Dilma, em sua campanha, em 2010, nem tocou no assunto.
Como é em alguns outros países
Quem tem se destacado na discussão desse tema, em sucessivos artigos e estudos – e a quem mencionei em outros textos passados –, é o juiz de Direito e professor em São Paulo Alfredo Attié Jr., membro da Associação Juízes para a Democracia.
Em um de seus trabalhos, Attié Jr. mostrou diferentes formas de compor tribunais superiores – no caso, os Tribunais Constitucionais, em bom grau equivalentes ao STF – em vigor na Alemanha, na Itália e em Portugal como exemplos de como é possível, sim, ampliar a representatividade e a legitimidade política dos integrantes da cúpula do Judiciário.
Ressalte-se que nos três países vigora o regime parlamentarista de governo, e não o presidencialista, como o nosso. O papel do Legislativo, no parlamentarismo, é por definição mais acentuado. Ainda assim, vale a pena relembrar como são inteligentes e envolvem diferentes Poderes as formas de montar os altos tribunais nesses países — e como eles funcionam.
Como é na Alemanha
Cabe aos 69 integrantes da Câmara Alta ou Senado, o Bundesrat(representantes dos 16 Estados alemães), escolher metade dos 16 ministros do Tribunal Constitucional. O tribunal opera com duas câmaras de oito ministros.
A outra metade compete aos 603 deputados da Câmara Baixa, oBundestag. Seis desses 16 ministros devem necessariamente ser pinçados entre os membros dos tribunais superiores federais. Os ministros têm mandato de doze anos e não podem ser reconduzidos ao posto.
Como é na Itália
O processo é mais complexo que na Alemanha.
Dos quinze ministros do Tribunal Constitucional, um terço é escolhido diretamente pelos integrantes dos tribunais superiores — ou seja, juízes elegem outros juízes.
Outro terço é indicado pelo Parlamento e os demais cinco ministros pelo presidente da República, com a aprovação do primeiro-ministro. Muitas vezes o real autor da indicação é o primeiro-ministro, já que o presidente italiano tem funções quase exclusivamente protocolares. O atual, porém, Giorgio Napolitano, é o político mais popular e respeitado da Itália e tem peso na vida política.
Há uma série de requisitos profissionais exigidos, e, tal como na Alemanha, os ministros têm mandato de doze anos, vedada a recondução sucessiva.
Como é em Portugal
Todos os 13 ministros da corte são escolhidos pela Assembléia da República – seis deles, no entanto, precisam obrigatoriamente provir dos tribunais superiores.
Também lá não há a vitaliciedade existente no Brasil: os ministros atuam no tribunal por um máximo de nove anos, sem possibilidade de recondução.
Elementos como esses provavelmente serão levados em conta se, por acaso, o Congresso resolver alterar a atual forma de formar o Supremo. Apesar das celeumas que envolvem as regras em vigor, não há sinal de que deputados e senadores pretendam alterá-las.
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