segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Efeito nem sempre é causa, por Dorrit Harazim



Dorrit Harazim, O Globo
Os fatos crus são conhecidos e rodaram mundo. Dois DJs de uma rádio australiana, imitando as vozes da rainha Elizabeth II e do príncipe Charles, telefonam para o hospital londrino onde Kate Middleton, hoje duquesa de Cambridge, se internara devido a enjoos decorrentes da gravidez. O trote dá certo. A ligação telefônica é transferida para a enfermagem de atendimento à duquesa e a dupla de DJs recebe informações detalhadas, precisas e sigilosas.
Em segundos, a íntegra da surreal conversa trafega solta na internet e torna-se a notícia do dia. Provoca duas reações básicas: gáudio em quem achou graça na brincadeira ter dado certo; comiseração e mal-estar em quem se colocou na pele do(s) funcionário(s) de plantão que caíram no trote.
Três dias depois, na manhã de 7 de dezembro, a enfermeira Jacintha Saldanha é encontrada enforcada num dos apartamentos funcionais anexos ao hospital King Edward VII. A notícia corre ainda mais rápido do que a primeira. E a reação é apenas uma, universal: horror.
O que merece uma reflexão mais criteriosa é o que se seguiu: a demonização instantânea dos dois DJs, como se causa (o trote) e efeito (o suicídio) estivessem ligados de forma única, indivisível e umbilical, sem espaço para a fatalidade e a complexidade da vida.
Em sua primeira entrevista televisionada após o fato, os radialistas da 2DayFM derramaram um constrangedor balde de lágrimas que, por inevitável, pareceu obrigatório e artificial. Bem mais convincente foi o ar perplexo e assustado da dupla.
“Nem nos nossos momentos mais delirantes podíamos imaginar que o telefonema ao hospital teria qualquer seguimento, que nossa imitação improvisada da rainha e do príncipe daria certo. Nem estávamos preparados para o diálogo que se seguiu”, contaram Mel Greig e Michael Christian.
Ambos já receberam várias ameaças de morte, foram transferidos para locais seguros, com proteção policial, e a Southern Cross Austero, grupo controlador da emissora em que trabalham, está gastando o equivalente a R$ 150 mil por semana com seguranças privados para dez de seus executivos.
Nem a mente mais fantasiosa poderia prever os desdobramentos do telefonema. Mesmo a volumosa tribo que vê na mídia uma malta de chacais dispostos a tudo para conseguir um furo ou considera jornalistas almas cínicas e insensíveis, competitivos e desprovidos de humanidade, deveria resistir à compulsão de encontrar culpados fáceis por tragédias difíceis de compreender.
O fato de que a vítima possivelmente ainda estaria viva caso não tivesse ocorrido o trote não equivale a atribuir o suicídio ao telefonema.
Jacintha Saldanha, nascida na Índia há 46 anos, era casada com um contador e mãe de dois filhos adolescentes. Deixou três bilhetes de despedida. Segundo o jornal britânico “The Guardian”, um deles contém instruções sobre o seu funeral, outro aborda o trote fatal e no terceiro bilhete faz críticas a seus colegas de trabalho do hospital.
Um inquérito policial foi aberto em Londres e detetives já ouviram um número expressivo de testemunhas para estabelecer o que pode ter contribuído para a sua morte.
Também certos e-mails de relevância para o caso e alguns contatos telefônicos estão sendo analisados em meio ao desenrolar de dois serviços fúnebres em homenagem à enfermeira, na Inglaterra.
O primeiro na cidade onde residia com a família, Bristol. O segundo na capela da catedral de Westminster, em Londres. Os ritos finais estão previstos para Udupi, estado de Karnataka, no sudoeste da Índia, onde moram os ancestrais do casal.
Coube a uma organização social chamada The Samaritans, voltada para o apoio emocional a pessoas em angústia e risco de suicídio, lançar um primeiro alerta à imprensa ao longo da semana. Fundada há 60 anos, com 201 postos espalhados pelo Reino Unido e Irlanda, a entidade já foi acionada por mais de cinco milhões de telefonemas ou e-mails, e publica estudos acadêmicos sobre o tema.
“Evite explicações simplistas para um suicídio”, diz o item 2 de uma lista de 14 tópicos de seu manual direcionado especificamente à cobertura jornalística para estes casos.
“Embora um catalizador pode parecer óbvio, nenhum suicídio resulta de um único fator ou evento, por mais penoso que ele seja. Os motivos para um indivíduo encerrar sua vida são múltiplos e as causas tendem a ser interligadas. Quando relevante, o noticiário deve procurar fornecer uma análise mais detalhada dos motivos pelos quais o número de fatalidades tem aumentado.”
O manual também recomenda o uso de determinadas terminologias (usar apenas “suicídio” no lugar de “tentativa bem sucedida de suicídio”, por exemplo). Pede cuidado na publicação de detalhes capazes de romantizar o ato, e discernimento rigoroso na divulgação do conteúdo de bilhetes de despedida.
Considerando-se que ocorre um suicídio no mundo a cada 40 segundos e que mais pessoas morrem desta forma do que, somadas, as vítimas de homicídios e guerras, melhor mesmo prestarmos atenção.
Na Austrália, o caso levantou cuidados redobrados. A agência reguladora de Comunicação e Mídia (ACMA) decidirá nos próximos dias se revogará a licença da 2DayFM.
Segundo o artigo 6 do código de radiodifusão em vigor no país, é proibido veicular palavras ditas por “pessoas identificáveis” sem, antes, informá-las. Toda gravação feita sem consentimento exige a autorização do dono da voz antes de poder ir ao ar.
A infração, grave, dos dois DJs foi essa.

Dorrit Harazim é jornalista

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