Merval Pereira, O Globo
A democracia foi o centro da sessão de ontem do Supremo Tribunal Federal que formalizou a condenação do núcleo político do PT por corrupção ativa com resultados que não deixam dúvidas da decisão do plenário: apenas dois ministros absolveram o ex-ministro José Dirceu; só um absolveu o ex-presidente do PT José Genoino, e o ex-tesoureiro Delúbio Soares foi condenado por unanimidade.
No mesmo dia em que se conheciam as cartas em que Dirceu e Genoino não poupam elogios às suas próprias pessoas e se colocam como mártires de uma ação política que está sendo perseguida por uma elite reacionária, os ministros do STF puseram os pontos nos ii, demonstrando que o que está sendo condenado é uma tentativa de golpe contra a democracia brasileira.
Na definição do presidente do Supremo, Ayres Britto, “(...) sob a inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi feito, não um projeto de governo, que é exposto em praça pública, mas um projeto de poder que vai além de um quadriênio quadruplicado. É um projeto que também é golpe no conteúdo da democracia, o republicanismo, que postula a renovação dos quadros de dirigentes e equiparação das armas com que se disputa a preferência dos votos”.
Já Celso de Mello analisou que o ato de infidelidade ao eleitor estimulado por venalidade governamental, além de constituir “grave desvio ético-político e ultraje ao exercício legítimo do poder”, acaba por gerar desequilíbrio de forças no Parlamento, tirando poder da oposição.
Aqui, ele tocou em ponto crucial: a migração de políticos, à custa de pagamento com dinheiro público, da oposição para siglas da base, que cresceram às custas desses expedientes, enquanto a oposição minguava.
Hoje temos a menor oposição numérica desde a volta da democracia, apenas três partidos assumem esse papel: PSDB, DEM e PPS. Os demais estão na base governista ou aspiram estar nela, como o novíssimo PSD.
O que começou com a compra de votos em dinheiro, denunciado o esquema que hoje está em julgamento, passou a se dar através da entrega de ministérios e cargos em órgãos públicos, numa montagem de coalizão tão ampla quanto heterogênea, que só o exercício do poder une.
O presidencialismo de coalizão esteve na raiz das análises dos dois últimos votos pela condenação do núcleo político petista. A compreensão de que é preciso fazer negociações políticas para organizar base partidária que permita a governabilidade foi explicitada pelos ministros, mas a “maneira argentária” com que elas foram comprovadamente feitas no início do primeiro governo Lula, organizada por Dirceu e Genoino, foi considerada por Celso de Mello “um atentado ao estado de direito”.
Para ele, essa maneira “subverte o sentido das funções, traduz gesto de deslealdade, compromete o modelo de representação popular e frauda a vontade dos eleitores, gerando como efeito perverso a deformação da ética de governo”.
Já para Ayres Britto, “com esse estilo de fazer política, excomungado pela lei brasileira, o resultado de cada eleição, naturalmente, seria alterado do ponto de vista ideológico”.
Segundo Celso de Mello, “há políticos, governantes e legisladores que corrompem o poder do Estado, exercendo sobre ele ação moralmente deletéria, juridicamente criminosa e politicamente dissolvente”.
Ele lembrou a famosa frase de Lord Acton, historiador, político e escritor inglês do século XIX, “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”, para ressaltar “a falta de escrúpulos dos agentes perpetradores da falta criminosa, a ação criminosa por eles exercida, a arrogância por eles demonstrada e estimulada por um senso de impunidade e o comportamento desonesto no desempenho de suas atividades”.
O decano concluiu sua análise sobre a compra de apoio político ressaltando “a perigosa situação a que o país está exposto, dirigido por dirigentes capazes de perpetrar delitos difamantes”.
Para Ayres Britto, “esse catastrófico modo interpartidário de fazer política”, que ele definiu como a formação “pecuniarizada de alianças argentárias, um tipo de coalizão excomungado pela Constituição”, leva a que o perfil ideológico que sai das urnas fique adulterado, ferindo a democracia.
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