Historiador descobre escola nazista onde órfãos brasileiros foram submetidos a trabalhos forçados entre 1930 e 1940. Sobrevivente relata como era o dia a dia no lugar
Natália MartinoHISTÓRIA
A rotina diária era marcada pelo trabalho forçado no
campo (acima). A suástica estava presente no time de futebol
Aos 10 anos de idade, no distante 1933, os dias do menino Aloysio Silva eram divididos entre a escola e as brincadeiras no Educandário Romão de Mattos Duarte, um orfanato do Rio de Janeiro. Até que dois homens apareceram por lá, jogando balas para o alto. Enquanto as crianças corriam para pegá-las, um dizia para o outro: “Bota esse menino para cá, bota aquele para lá.” Silva ficou no grupo dos mais ágeis, o que selou sua transferência para a Fazenda Santa Albertina, no interior de São Paulo, hoje município de Campina do Monte Alegre. Os dois homens eram Osvaldo Rocha Miranda, membro de uma das famílias mais poderosas do País, e seu motorista, André. Eles selecionaram 50 crianças órfãs, sendo 48 delas negras ou pardas, para mantê-las em regime de escravidão, sob a égide do ideário nazista. Os Rocha Miranda eram donos de bancos, empresas de transporte, hotéis de luxo e propriedades rurais. Alem de ricos, faziam parte do ultraconservador movimento integralista brasileiro e mantinham relações estreitas com os nazistas, como o ministro da Economia de Guerra de Hitler, Alfried Krupp, que chegou a comprar uma fazenda do clã na década de 1940.
A fazenda onde foi criado o centro de trabalhos forçados para os 50 órfãos no interior paulista era de propriedade dos Rocha Miranda. “Quando chegamos, um paraibano ruim já estava esperando a gente”, diz Silva, hoje um senhor de 89 anos. “Nossa vontade era só fugir, mas esse paraibano tinha dois cachorros ensinados. Era só ele apontar que eles vinham nos cercar.” O desejo de fuga era mais do que justificável. As crianças trabalhavam por cerca de dez horas diárias. Quando desagradavam aos tutores, eram submetidas a agressão física, prisão e jejum. “Hora de folga, que a gente poderia brincar, a gente ficava tudo sentadinho ali, sem sair porque senão o tutor já vinha com o cachorro”, lembra Silva, testemunha de uma história que só veio à tona há 14 anos, quando uma das sedes das fazendas dos Rocha Miranda ia ser reformada e foram encontrados tijolos com a suástica – símbolo nazista.
MEMÓRIA
Aos 89 anos, Aloysio Silva sobreviveu ao centro nazista
Mas os órfãos escravos não viviam na ilegalidade – o centro dos Rocha Miranda recebia a supervisão da Delegacia Regional de Ensino de Itapetininga, órgão em consonância com o ideário da elite dominante do País, que defendia, entre outras coisas, uma política eugenista. O eugenismo, parte fundamental da ideologia nazista, usava a genética para justificar a suposta superioridade da raça branca e dava o aval para uma redução de direitos políticos e jurídicos às raças consideradas inferiores, como os negros. Até a Constituição da República de 1934, elaborada durante o governo de Getúlio Vargas (1882-1954), dizia que era função do Estado “estimular a educação eugênica”. Em 1933, quando Aloysio Silva chegou ao local, a fazenda era uma base da Ação Integralista Brasileira (AIB) e o nazismo também era propagado abertamente. Os tijolos da fazenda vizinha, a Cruzeiro do Sul, que à época era também da família Rocha Miranda, ainda guardam a suástica nazista. Trata-se, segundo o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat), da única obra que atesta a experiência nazista no Estado de São Paulo e, por isso, já foram iniciados os estudos para o tombamento do local.
O sofrimento de parte desses órfãos terminou com a Segunda Guerra Mundial, em 1945. Alguns deles morreram durante o período de trabalhos forçados, outros foram enviados à guerra, alguns fugiram. Décadas depois, Aloysio Silva rompeu o silêncio e deu seu depoimento ao pesquisador Sidney Aguilar Filho, na tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil”, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Tudo isso foi parte de uma política de Estado e estava tão embasado no imaginário cultural da época que as pessoas achavam normal”, afirma o historiador. Silva ainda mora em Campina do Monte Alegre, município que ostenta o nome da família Rocha Miranda na placa de uma das suas principais ruas e da sua maior escola. Aguilar Filho conta que, durante a pesquisa, encontrou três órfãos da Fazenda Santa Albertina – também moradores em Campina de Monte Alegre, mas dois deles morreram durante a execução da tese. O único que contou sua história foi Silva. Que passou a vida tentando esquecer. “Não tenho nenhuma memória de coisa boa daquele lugar”, diz.
ACHADO
Sidney Aguilar Filho fez a descoberta a partir do tijolo da fazenda com a suástica (acima)
"Tudo isso foi parte de uma política de Estado e estava tão embasado
no imaginário cultural da época que as pessoas achavam normal"
Sidney Aguilar Filho, historiador
Fotos: Divulgação; Antoninho Perri/ASCOM/Unicamp
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