Não há quem não tenha se surpreendido com os rumos que vem tomando o julgamento do Mensalão. O país, até aqui, estava acostumado à inimputabilidade de seus políticos. Podiam ser cassados no seu próprio âmbito, mas jamais no Judiciário.
O próprio Fernando Collor, levado ao impeachment pelo Senado, safou-se no Supremo Tribunal Federal por 5 a 3. Não houve, naquela ocasião, nenhuma surpresa: até então, o STF jamais havia condenado um político. E prosseguiu assim até aqui.
Nesse contexto, não causou qualquer estranheza a descrença popular quanto ao Mensalão. Mais ainda pelo fato de se terem passado, entre a denúncia pública e o julgamento, nada menos que sete anos.
No mundo jurídico, muitos dizem que isso é normal. Mas Collor foi julgado – e absolvido - pelo STF em 1994, dois anos após a CPI que gerou o seu impeachment. A opinião pública não se revoltou com a absolvição. Contentou-se com o impeachment.
No caso do Mensalão, poderia ter ocorrido o mesmo. Afinal, a CPI gerou também cassações, inclusive a do assim considerado mentor do processo, o ex-ministro José Dirceu, apeado da Casa Civil e despojado de seu mandato de deputado federal.
Por que, porém, isso não ocorreu? Há aí uma conjunção de fatores, entre os quais uma maior conscientização quanto à necessidade de se ir adiante. Collor, ao perder o mandato, viu-se banido da vida pública por oito anos, como impõe a lei, e saiu de cena por todo aquele período.
O mesmo não se deu com a maioria dos protagonistas do Mensalão. José Dirceu tornou-se um próspero consultor de empresas (mesmo sem jamais ter sido empresário) e continuou a ser, depois de Lula, o mais influente líder de seu partido.
João Paulo Cunha, absolvido pelo plenário da Câmara, reelegeu-se deputado e foi designado pelo PT para presidir nada menos que a Comissão de Constituição e Justiça. José Genoíno tornou-se assessor especial do Ministério da Defesa.
Delúbio Soares, por sua vez, expulso do partido na sequência imediata do escândalo, foi reabilitado e passou a cogitar de uma candidatura a deputado federal. Isso só para citar algumas das figuras exponenciais do processo.
O público sentiu um ar de deboche em relação ao escândalo. O próprio Delúbio chegou a dizer que um dia “vamos rir disso tudo”.
José Dirceu declarou que estava “cada vez mais convencido de minha inocência”, como se tal consciência fosse um processo de fora para dentro, que lhe estava sendo proporcionado em forma de revelação mística, surpreendendo-o.
A gota d’água parece ter sido o próprio Lula. Na sua onipotência, passou de um pedido de desculpas para uma descarada negativa, que desembocou na afirmação de que o Mensalão não só não havia existido como teria sido parte de uma tentativa de golpe de Estado contra seu governo.
Caiu no ridículo sem o perceber, como se os teipes que inundam a internet, em que reconhece o deslize penal do partido, não existissem.
Não bastasse, decidiu partir para o corpo a corpo com os ministros do STF, culminando com o desastrado encontro com Gilmar Mendes, em que tentou chantageá-lo, caso não concordasse em adiar o julgamento. Gilmar não topou.
Na ocasião, mencionou outros ministros aos quais iria procurar, chamando Joaquim Barbosa de “traidor”. Mexeu com os brios da instituição. Para completar, há outro fator que complementa o cenário de mudança: a televisão.
Ao tempo em que Collor foi julgado, as sessões não eram televisadas; a mídia não se ocupava tanto do STF; o público não sabia os nomes, nem conhecia os rostos dos juízes do Supremo.
Hoje, se não chegam a ser personagens populares, são ao menos conhecidos de uma parcela significativa da população. Seus filhos e netos sofrem a pressão dos ambientes que frequentam. O peso moral da toga é maior.
Sendo esse o mais importante julgamento já submetido à instituição, cada juiz sabe que vota para a história (ou por outra, quase todos: alguns ainda não o perceberam). Não devem a toga a ninguém, como no passado parecia se supor.
O presidente da República indica, o Senado sabatina e o presidente nomeia. Tudo isso, porém, é impessoal. Investido no cargo, o juiz é refém de seu compromisso institucional, moral e constitucional. Não deve nada a ninguém mais.
Diante disso, o Mensalão fez caírem por terra truques processuais e exigências formais (os tais atos de ofício, que nenhum corrupto competente irá produzir), diante do clamor dos fatos, que os autos proclamam.
Mesmo a linguagem hermética, gongórica e abundante do juridiquês, moldada para afastar o público da compreensão do que se julga, foi atenuada a partir do início da votação.
O julgamento do Mensalão pode ser um marco renovador não só da jurisprudência penal brasileira, mas da vida pública em seu conjunto. Entre outras façanhas, está pondo fim à torre de marfim da Suprema Corte. Que assim prossiga.
Ruy Fabiano é jornalista
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