domingo, 12 de janeiro de 2014

Programação intensa - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O GLOBO - 12/01

Somos viciados em fazer uma porção de coisas e, mesmo quando se chega a uma altura da vida em que elas se mostram inúteis e trabalhosas, continuamos sem deixar de fazê-las



Como de costume, vou deixar em paz o generoso leitor e a amável leitora por quatro domingos, neste começo de ano, a partir de hoje. Se não erro aqui nas minhas contas, devo estar de volta em 16 de fevereiro. Também como de costume, vou passar o tempo que puder na minha terra, com os amigos de infância, que vêm escasseando num ritmo alarmante, o que os torna cada vez mais preciosos. Lá se foi, faz poucos meses, Ary de Almiro, que jogou bola comigo e, quando rapazinho, era discípulo de meu primo Walter Ubaldo, na Escola Filosófica do Sorriso de Desdém. “Mais eloquente que a pena do escritor, mais poderosa que a espada do soldado, a maior arma que o homem tem é o sorriso de desdém” — era o moto da escola e eles saíam pela rua, tacando o sorriso de desdém a torto e a direito.

Uma vez ficaram filosofando e bebendo cerveja no bar que hoje é de Espanha, mas na época era de Waldemar e, quando Waldemar trouxe a conta, todos lhe deram um sorriso de desdém como resposta e ninguém se coçou para pagar. Rendeu um certo bode, porque Waldemar não apreciou essa forma de pagamento e foi queixar-se ao coronel Ubaldo, avô de Walter (e meu). O coronel pagou, mas decretou a extinção da escola filosófica e disse que mandava cobrir de porrada o primeiro filósofo, desdenhoso ou não, que aparecesse em sua frente, com isso quase ferindo de morte o sempre fértil pensamento filosófico na ilha. Na última vez em que conversei com Ary, lembramos isto entre risos. Pois agora ele se foi, menos uma testemunha e participante de meu tempo e de minha história pessoal — e é por isso que se diz, com plena razão, que, quando morre um amigo, também nós morremos um pouco, é como se a vida não fosse mais inteira. Um por um, vão desaparecendo os que conheceram os filósofos do sorriso de desdém e daqui a pouco talvez também desapareça para sempre a sua lembrança.

Por essas e outras e cada vez mais ciente de que meu futuro é agora mesmo, vou cumprir uma extensa agenda itaparicana, para aproveitar de tudo o que posso, não só da companhia dos amigos, como das experiências que somente agora começo a valorizar direito. Não organizei nada, nem sequer mentalmente, resolvi deixar que as coisas ocorram de forma espontânea, ao acaso. Até porque um dos meus projetos mais importantes, talvez o mais importante, pode vir a anular todos os demais. Já falei aqui em Vavá Major, renomado peixeiro aposentado, amigo meu de longa data, que hoje não faz nada, nem de dia nem de noite. Pergunta-se: como assim, não faz nada? É isso mesmo, não faz nada, não joga dominó, não joga carteado, não discute futebol, não comenta mulher, não carrega nem pacote nem embrulho, não canta, não toca violão, não passeia, não cria nem galo nem passarinho, não joga no bicho, não faz absolutamente nada.

Quem nunca experimentou não fazer nada, não sabe a dificuldade. Somos viciados em fazer uma porção de coisas e, mesmo quando se chega a uma altura da vida em que elas se mostram inúteis e trabalhosas, continuamos sem deixar de fazê-las. Vavá me disse que exageram um pouco, nesse negócio de ele não fazer nada. Claro que faz, tem muitos pensamentos e faz outras coisas, de que assim no momento não recorda. Só não quer saber de nada que dê labuta e certos pensamentos dão labuta, de forma que estes ele evita, nada de contas, adivinhações e perguntas que puxem demais pela ideia. Por exemplo, aprecia uma bela história bem contada, mas, se puxar pela ideia, não tem negócio, assim como, se não tiver quem explique a novela tintim por tintim, ele é que não vai fazer força para compreender, cansa muito, quem quiser que goste de viver na canseira, ele não.

Já fiz algumas tentativas de aprender pelo menos um pouco da técnica de Vavá, porque da outra vez subestimei as dificuldades. Agora, em lugar de simplesmente ouvir conselhos e lições, vou pleitear um estágio, com o cuidado de que não renda nenhuma labuta para ele. Vou simplesmente acompanhá-lo e imitá-lo na medida do possível. Pretendo também conversar um pouco, mas tenho que caprichar numa conversa que tampouco renda labuta. Acho que, num mês de estágio, dá para pegar o fundamental.

E há outras opções, além do estágio com Vavá Major. Xepa diz que o amigo dele que fisga tatus na vara de pescar está disposto a pescar mais dois para eu ver, é só esperar uma maré boa para tatu, que deve ser depois dessa lua nova. Mas agora ele exige que passe tudo no Fantástico. Isto eu não posso prometer, mas vou levar uma câmera para filmar não somente este evento, como outros acontecimentos biológicos, quais sejam uma jararaca cruzando com um caramuru, que Sete Ratos me garantiu ter visto mais de uma vez e um galo de briga raceado com urubu, que meu primo Zé de Neco também me garantiu ter visto.

Finalmente, o setor social está mais que assegurado. Reabriu em alto estilo o Grande Hotel, todo reformado e cheio de estrelas. Aproveitando o ensejo, Gugu Galo Ruço, rico milionário que não tem mais onde socar dinheiro e dizem que outro dia, por causa de um aborrecimento no aeroporto, quis comprar La Paz à vista, arrendou o hotel para hospedar os convidados de uma festa de arromba que vai dar. Eu não devia contar, mas o primeiro dever do jornalista é para com a verdade e a verdade parece ser é que vão instalar um cassino durante os sete dias de festa, com Zecamunista jogando pôquer pela casa. E, se vocês aparecerem durante as festividades e quiserem me ver, eu sou aquele nativo de bermuda e chinelo, junto de uma barraquinha, trocando livros por fichas de roleta — o Brasil é um país de todos.

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