O GLOBO - 12/01
Boas leituras, de Elio Gaspari e Eichbauer
* Kennedy cogitando invadir o Brasil de Jango é “Reis e ratos” puro. Quem não viu ou não atentou para esse filme não tem a excitação de ler as novidades da futura edição do livro de Elio Gaspari sobre a ditadura. Mautner e eu temos. E, claro, Mauro Lima também.
*O ano de 2013 teria valido a pena se fosse só pelo romance de Fernanda Torres. Que beleza é ver um talento literário autêntico surgir assim tão nitidamente. Não que Nanda seja uma surpresa absoluta: quem lê suas crônicas sabe que ela é do ramo. Mas um romance é outra coisa — e no seu “Fim“ de estreia ela mostra que vai além de escrever bem. O tom é tão bem encontrado que eu gostei da primeira frase, maldizendo a calçada portuguesa, eu, que sou um eterno defensor das pedrinhas lusitanas e só gostaria de vê-las sempre bem repostas: ouve-se a voz interior de alguém que tem por que dizer aquilo daquele jeito. E assim vai até o Padre Graça (Nanda relembra Nando) ir ao encontro dos índios, virada descontínua que põe tudo o que tínhamos acabado de ler sobre caras de Copacabana, entre lágrimas e gargalhadas, sob uma inesperada perspectiva. Eu só perguntaria a Nanda se foi ela ou o revisor da editora quem corrigiu o português de Dolores Duran, evitando tanto o “lhe” original quanto o “te” opcional de quem canta como os cariocas falam: “Não deixe o mundo mau levá-lo outra vez”? Acho que isso pode ser descorrigido numa próxima impressão (com o merecido sucesso, impressões se sucederão e novas edições há de sempre haver).
* Tem uns erros de português (que me perdoem os linguistas o uso da palavra “erro”, para a qual eles devem ter substituta que não me ocorre) no livro maravilhosamente intitulado “Identidade Frota”, mas o livro é cheio da vitalidade e da franqueza de Alexandre, o Grande, figura importante em minha segunda (ou terceira) vida carioca. Os erros em geral são de flexão indevida dos verbos ter e haver. Como a maioria se dá nas falas entre aspas do biografado, pode ser apenas o modo de transcrever seu linguajar coloquial. Mas não sei não. Tem muito “fuder” e “fudido”, “viado” e “muleca”, esse velho hábito de escrever sem cuidado as palavras que se referem a coisas desrespeitáveis. Sempre achei esse costume chato e moralista no mau sentido. Já discuti com linguistas petistas no blog obraemprogresso que mantínhamos durante a feitura de “Zii e zie”. Seja como for, o livro sobre Frota é muito bom de ler. Muito quente e honesto, pelo menos por parte do protagonista.
* Mas esse é livro que leio em 2014, interrompendo mais uma vez o “Getúlio” (já não mais na fase gaúcha), que quero retomar logo. Em 2013 saiu “Cartas de marear” de Hélio Eichbauer, um livro de memórias que é ao mesmo tempo uma reflexão sobre os sentidos artísticos da atividade do seu autor. Hélio é uma personalidade muito especial e o livro traz isso pelas observações sobre cultura clássica e experimentações modernas. Um jovem de Copacabana — que poderia cruzar com os personagens de Nanda pelas calçadas de pedras portuguesas — amadurecendo sua sensibilidade num mundo em guerra (essa estendida guerra que atravessou as vidas das pessoas de minha geração) olhando para os clássicos, estudando com Svoboda e colaborando com Zé Celso. Muito bonito quando a gente não sabe se algumas conversas estão se dando entre deuses do Olimpo e semideuses das ruas de Atenas ou entre estudantes tensionados pela Guerra Fria. “Cartas de marear” é um livro civilizado e civilizador. Desejo a muitos a sorte de lê-lo.
* Talvez haja manifestações em junho outra vez. Alguns amigos me dizem que os grupos anarquistas estão se multiplicando e que, embora a polícia esteja agora mais avisada e preparada para conter os movimentos, os manifestantes também aprenderam muito com a experiência. Há muitos que dizem que não haverá Copa. É preciso saber se o grosso da população urbana brasileira aderirá a algo assim. Eu sou da classe média (não adianta os malucos da internet dizerem que sou rico: minha cabeça é classe média e, na real, não fiquei rico), tendo a reagir como pessoas da classe média. Sim, sou rebelde, na verdade um medalhão transviado, mas sou classe média (como a maior parte dos que precisam se manifestar de alguma forma nessa vida). Prefiro que haja Copa. Queria que a Fifa fosse respeitável e que o time brasileiro pudesse fazer jus à antiga fama do nosso futebol. Quero ser feliz. Afinal, foi o que todo mundo me dizia, na passagem do ano, para eu ser.
* Gostei de ler Francisco Bosco com jeito de quem está lendo Proust em Trancoso. Proust faz nossos neurônios se comportarem de acordo com o texto que ele vai destilando. Pegou Bosco. Há anos que não releio mas me lembro de tudo.
Boas leituras, de Elio Gaspari e Eichbauer
* Kennedy cogitando invadir o Brasil de Jango é “Reis e ratos” puro. Quem não viu ou não atentou para esse filme não tem a excitação de ler as novidades da futura edição do livro de Elio Gaspari sobre a ditadura. Mautner e eu temos. E, claro, Mauro Lima também.
*O ano de 2013 teria valido a pena se fosse só pelo romance de Fernanda Torres. Que beleza é ver um talento literário autêntico surgir assim tão nitidamente. Não que Nanda seja uma surpresa absoluta: quem lê suas crônicas sabe que ela é do ramo. Mas um romance é outra coisa — e no seu “Fim“ de estreia ela mostra que vai além de escrever bem. O tom é tão bem encontrado que eu gostei da primeira frase, maldizendo a calçada portuguesa, eu, que sou um eterno defensor das pedrinhas lusitanas e só gostaria de vê-las sempre bem repostas: ouve-se a voz interior de alguém que tem por que dizer aquilo daquele jeito. E assim vai até o Padre Graça (Nanda relembra Nando) ir ao encontro dos índios, virada descontínua que põe tudo o que tínhamos acabado de ler sobre caras de Copacabana, entre lágrimas e gargalhadas, sob uma inesperada perspectiva. Eu só perguntaria a Nanda se foi ela ou o revisor da editora quem corrigiu o português de Dolores Duran, evitando tanto o “lhe” original quanto o “te” opcional de quem canta como os cariocas falam: “Não deixe o mundo mau levá-lo outra vez”? Acho que isso pode ser descorrigido numa próxima impressão (com o merecido sucesso, impressões se sucederão e novas edições há de sempre haver).
* Tem uns erros de português (que me perdoem os linguistas o uso da palavra “erro”, para a qual eles devem ter substituta que não me ocorre) no livro maravilhosamente intitulado “Identidade Frota”, mas o livro é cheio da vitalidade e da franqueza de Alexandre, o Grande, figura importante em minha segunda (ou terceira) vida carioca. Os erros em geral são de flexão indevida dos verbos ter e haver. Como a maioria se dá nas falas entre aspas do biografado, pode ser apenas o modo de transcrever seu linguajar coloquial. Mas não sei não. Tem muito “fuder” e “fudido”, “viado” e “muleca”, esse velho hábito de escrever sem cuidado as palavras que se referem a coisas desrespeitáveis. Sempre achei esse costume chato e moralista no mau sentido. Já discuti com linguistas petistas no blog obraemprogresso que mantínhamos durante a feitura de “Zii e zie”. Seja como for, o livro sobre Frota é muito bom de ler. Muito quente e honesto, pelo menos por parte do protagonista.
* Mas esse é livro que leio em 2014, interrompendo mais uma vez o “Getúlio” (já não mais na fase gaúcha), que quero retomar logo. Em 2013 saiu “Cartas de marear” de Hélio Eichbauer, um livro de memórias que é ao mesmo tempo uma reflexão sobre os sentidos artísticos da atividade do seu autor. Hélio é uma personalidade muito especial e o livro traz isso pelas observações sobre cultura clássica e experimentações modernas. Um jovem de Copacabana — que poderia cruzar com os personagens de Nanda pelas calçadas de pedras portuguesas — amadurecendo sua sensibilidade num mundo em guerra (essa estendida guerra que atravessou as vidas das pessoas de minha geração) olhando para os clássicos, estudando com Svoboda e colaborando com Zé Celso. Muito bonito quando a gente não sabe se algumas conversas estão se dando entre deuses do Olimpo e semideuses das ruas de Atenas ou entre estudantes tensionados pela Guerra Fria. “Cartas de marear” é um livro civilizado e civilizador. Desejo a muitos a sorte de lê-lo.
* Talvez haja manifestações em junho outra vez. Alguns amigos me dizem que os grupos anarquistas estão se multiplicando e que, embora a polícia esteja agora mais avisada e preparada para conter os movimentos, os manifestantes também aprenderam muito com a experiência. Há muitos que dizem que não haverá Copa. É preciso saber se o grosso da população urbana brasileira aderirá a algo assim. Eu sou da classe média (não adianta os malucos da internet dizerem que sou rico: minha cabeça é classe média e, na real, não fiquei rico), tendo a reagir como pessoas da classe média. Sim, sou rebelde, na verdade um medalhão transviado, mas sou classe média (como a maior parte dos que precisam se manifestar de alguma forma nessa vida). Prefiro que haja Copa. Queria que a Fifa fosse respeitável e que o time brasileiro pudesse fazer jus à antiga fama do nosso futebol. Quero ser feliz. Afinal, foi o que todo mundo me dizia, na passagem do ano, para eu ser.
* Gostei de ler Francisco Bosco com jeito de quem está lendo Proust em Trancoso. Proust faz nossos neurônios se comportarem de acordo com o texto que ele vai destilando. Pegou Bosco. Há anos que não releio mas me lembro de tudo.
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