Dorrit Harazim, O Globo
“O comentário é livre, mas os fatos são sagrados”, ensinou o liberal britânico C.P. Scott, homem forte do “Manchester Guardian” por mais de meio século. Embora dirigida à tribo dos jornalistas, alguma serventia genérica a frase deveria ter para outros bípedes. Até mesmo para políticos.
Não foi o que norteou a governadora Roseana Sarney ao finalmente apresentar-se em público e dar sua primeira entrevista coletiva desde a exposição do Maranhão brutal. O país jamais havia visto imagens como as do açougue humano no qual se transformara o Complexo Penitenciário de Pedrinhas antes do Natal.
E São Luís ainda não desmobilizara de todo o temor de novo surto de violência comandada pelos detentos. O enterro da menina Ana Clara no início da semana, queimada no incêndio ao ônibus em que viajava com a mãe, servia de lembrete.
A entrevista da primeira mandatária do estado poderia ter tido função múltipla. Em primeiro lugar, dirigir-se à sua gente, aos maranhenses — sem esquecer de manifestar pesar público à família da menina incendiada. E por que não lamentar a morte dos detentos mortos sob a custódia do estado? Depois, responder às perguntas da mídia. Com fatos.
Roseana Sarney preferiu outro caminho. Se é verdade que a coragem pode ser contagiosa em determinadas circunstâncias, a tibiez certamente contagia o homem bem mais. Prova disso é a própria falência endêmica do sistema prisional brasileiro — com raras exceções, demandas são respondidas pelo poder público com empenho semelhante ao de atendentes de telemarketing.
A governadora inovou. Conseguiu ofender a razão ao alinhavar uma sucessão de frases que não fazem nexo nem soltas nem em conjunto. Vejamos:
Após passar à vol d’oiseau pelo choque que sentiu com a matança de presos em outubro, ressalvou que “até setembro, Pedrinhas tinha 39 mortes, estava portanto dentro do limite que se esperava”. Caso ela tenha se expressado bem, isso significa que apesar de estar no comando do estado há cinco anos a governadora opera com a expectativa de uma taxa anual de 39 presos chacinados em seus presídios.
“O Maranhão está indo muito bem. Talvez seja o único estado do Brasil que vai ter todas as suas estradas interligadas por asfalto.” Antes de asfaltar também os Lençóis Maranhenses seria bom a governadora se debruçar sobre os indicadores sociais do estado: segundo pior índice de mortalidade infantil do Brasil, metade da população sem rede de esgoto, quase 40% da população sem acesso a água tratada, segundo pior expectativa de vida do Brasil, dez piores escolas com piores índices no Enem.
Outras afirmações dispensam comentários: “O Maranhão está atraindo empresas e investimentos. Um dos problemas que estão piorando a segurança é que o estado está mais rico, o que aumenta o número de habitantes.”
Ou ainda: “Nosso sistema de saúde é muito bom para os presos.” Curiosamente, no plano de ação anunciado conjuntamente com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, um dos onze itens é justamente “Melhoramento no atendimento à saúde”.
Dado que promessas não poderiam faltar, ouvimos que seu governo vai investir R$ 131 milhões de reaparelhamento do sistema. Em dezembro, falou-se em erguer onze presídios em seis meses.
Talvez isso explique a singular interpretação da atual crise feita pelo secretário estadual de Justiça e Administração Penitenciária, Sebastião Uchôa, a propósito da construção de presídios. “Tem até males que vêm para o bem”, declarou em entrevista à Rádio Bandeirantes. “Por causa dos acontecimentos, olha os investimentos que estão sendo feitos!”
A governadora tampouco acertou ao se insurgir contra a divulgação, pela “Folha de S.Paulo”, do vídeo em que detentos filmam a barbárie cometida com três presos decapitados. Trata-se de imagens estarrecedoras, obrigatórias para quem quer entender e encarar o problema.
“A divulgação é repudiante”, disse Roseana através de nota, “pois fere todos os preceitos de direitos humanos e as leis de proteção aos cidadãos e à família (dos detentos mortos), que se vê novamente diante de uma exposição brutal”. Cabe a pergunta se quem feriu a lei de proteção aos três presos não foi o poder público, ao não impedir que eles fossem retalhados sob sua custódia.
Domingos Pereira Coelho é vendedor de frutas em São Luís. É pai de Dyego, 21 anos, um dos decapitados. A compostura, a precisão e a honradez com que respondeu às perguntas da repórter Juliana Coissi, da “Folha”, são desconcertantes em meio a tanta verborragia oca. Sim, ele assistiu ao vídeo uma vez, era preciso e foi embalar o filho pela última vez. Contou, um a um, 180 furos na parte da frente do corpo deitado de bruços.
O entregador de frango abatido Marcio Ronny da Cruz Nunes ainda não fala. Tem 37 anos, é pai de cinco filhos e voltava para a sua Minha Casa quando o ônibus em que viajava foi parado e incendiado. Salvou duas crianças, uma delas a menina Ana Clara, que estava em chamas e não conseguia sair. Marcio retornou ao fogo para resgatá-la.
Hoje ele está num hospital de Goiânia com queimaduras em 75% do corpo enquanto campanhas se multiplicam através de redes sociais para fornecer roupas, calçados e alimentos para seus filhos. Já é chamado de “Herói do Fogo” pela população local.
Segundo “O Imparcial”, o governo do Maranhão fez doação de cesta básica.
Até a noite de sexta-feira, a governadora não teve tempo de fazer uma visita de alento à família Nunes. Nem à da menina Ana Clara. Mas fez um pronunciamento gravado no dia da morte da menina:
“Reafirmo minha determinação em combater o crime. Não seremos subjugados nem nos deixaremos amedrontar por criminosos. Não fugirei à minha responsabilidade. Peço ao povo maranhense que não dê ouvidos a essa rede de boatos que tenta tumultuar o dia a dia da cidade.”
Roseana Sarney legítimo.
Dorrit Harazim é jornalista.
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