O rio da Prata é um corpo marrom e soturno de água formado pelo encontro dos rios Uruguai e Paraná. Mais ao sul, banha igualmente as costas argentina e uruguaia, se interpondo entre os dois países, formando uma fronteira náutica.
É também a tumba silenciosa de centenas de vítimas da ditadura argentina que tiveram suas histórias submersas para sempre em suas águas turvas.
Mais que um sistema político tirano, cujo cerne de gestão estava no cerceamento das liberdades pessoais, a ditadura argentina se caracterizou pela virulência de sua passagem. Diferente, ainda que igualmente brutal, de outras ditaduras do continente, os militares argentinos se especializaram no horror como modus operandi.
Em 1976, na sonolenta praia uruguaia de Cabo Polônio, hoje balneário turístico hippie, começaram a chegar as primeiras testemunhas silenciosas do terror da ditadura argentina. Eram corpos mutilados, muitos tinham os pés e mãos atados e diversos tipos de lesões. Entre os corpos que desaguaram nas costas uruguaias estava o de Floreal Avellaneda, de 15 anos.
“Vinte cinco corpos mutilados afloraram entre março e outubro de 1976 nas costas uruguaias, talvez apenas uma pequena parte do carregamento de torturados até a morte na Escola Mecânica da Armada (ESMA), (..), incluindo um menino de 15 anos, Floreal Avellaneda, atado pelos pés e mãos, com ferimentos na região anal e fraturas visíveis, dizia a autópsia”, escreveu o autor Rodolfo Walsh em uma das cartas que enviava de maneira clandestina aos jornais e embaixadas, durante a ditadura.
O voo da morte, como ficou conhecida a última viagem que faziam as vítimas dos militares até sua tumba fluvial, constitui um dos mais macabros capítulos da ditadura argentina. Era nele que os torturados eram drogados e atirados ainda vivos ao rio da Prata, de encontro à morte.
Nesta quarta-feira, começou em Buenos Aires o julgamento que promete ser um dos maiores julgamentos por crimes de ordem humanitária da história argentina. No banco dos réus, estão 68 dos piores carrascos da ditadura.
Entre os acusados estão pilotos, tripulação e marinheiros, parte da máquina fúnebre montada pelos militares. E também alguns cretinos célebres, como o piloto argentino-holandês Julio Poch, acusado depois de alardear publicamente seus feitos de verdugo para seus colegas, quando trabalhava para a empresa holandesa Transavia.
O julgamento deve durar dois anos e ouvir mais de 900 testemunhas. Se condenados, a Argentina estará dando um voo em outra direção, a alguma espécie de reparação histórica. É apertar o cinto e esperar que este seja o destino final destes torturadores.
Detalhe um dos corpos encontrados entre 1976 e 1983 nas praias uruguaias, parte do acervo de mais de 130 imagens arquivadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organizacao dos Estados Americanos (OEA).
Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha, antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald, mantém o blog Conexão Buenos Aires e não consegue imaginar seu ultimo dia na capital argentina. Estará aqui todos os sábados.
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