Sequestrado em 1977 relata maus-tratos por falso pai, condenado a 15 anos de prisão
BUENOS AIRES — Francisco Madariaga pôde comemorar nesta quinta-feira seus 35 anos ao lado do pai, Abel, que conheceu há pouco mais de dois anos, no último dia do julgamento sobre a existência de um plano sistemático de roubo de bebês durante a ditadura. Madariaga nasceu numa maternidade clandestina de Buenos Aires, em 1977. Sua mãe, Silvia Quintela, fora sequestrada pelos militares quando estava grávida de quatro meses e continua desaparecida. O bebê foi entregue a Victor Alejandro Gallo - na época um oficial do Exército - e sua mulher, Susana Colombo, condenados ontem a 15 e 5 anos de prisão, respectivamente. Madariaga foi registrado como filho biológico deles e recebeu nome de Alejandro Ramiro. Assim começaram uma história de abusos e maus tratos e uma busca que terminou em fevereiro de 2010, quando Francisco descobriu sua verdadeira identidade e teve a sorte de ter um pai vivo e que o estava esperando.
O GLOBO: Como era sua vida antes de conhecer sua identidade?
FRANCISCO MADARIAGA: Fui roubado e para os que me roubaram eu era como um troféu de guerra. Recebi maus-tratos físicos e psicológicos desde muito pequeno. O militar que me roubou me agredia como se eu fosse seu inimigo. Cada vez que voltava do trabalho, ele praticava violência contra mim e fazia coisas terríveis. Foram anos de muito sofrimento. Lembro-me de que ele me fez pendurar no pescoço, como um colar, uma bala que usou numa operação contra opositores da ditadura. Perversões nunca vistas.
Você pode contar como era exercida essa violência física?
MADARIAGA: Ele tentou me afogar numa piscina, fazia comigo as mesmas coisas que fazia com presos políticos nos centros clandestinos de tortura.
Quantos anos você tinha quando começou a se perguntar se realmente era filho dessas pessoas?
MADARIAGA: Demorou muito, pois fui criado com medo, eles fizeram o possível para que eu nunca soubesse a verdade. Tentaram me doutrinar, para que eu pensasse como eles, mas comigo não conseguiram.
Quando as dúvidas começaram?
MADARIAGA: Na escola meus amigos me diziam que eu não me parecia com ninguém da minha família e aos 20 anos eu já sentia que carregava um peso muito grande nas minhas costas. Demorei outros 12 anos para me aproximar das Avós da Praça de Maio, e nesse período minha vida ficou paralisada.
Como era a sua relação com o casal que o criou?
MADARIAGA: Aos 16 anos fiquei sozinho com meus supostos irmãos, porque meu suposto pai foi preso por diversos delitos e minha mãe foi internada numa clínica psiquiátrica. A partir desse momento perdi contato direto com eles. Minha suposta mãe era uma pessoa desequilibrada, e hoje ela tenta se defender dizendo que também era maltratada pelo marido, que estava ameaçada, mas é tudo uma grande mentira. Ela nunca explicou por que e como eu fui roubado. Meu suposto pai é um criminoso, que nunca se arrependeu do que fez. Os advogados da acusação pediram 25 anos de prisão para ele e 16 para ela, espero que sejam condenados (a entrevista aconteceu horas antes da sentença).
Esse é um julgamento histórico para a Argentina...
MADARIAGA: Somos parte de um plano orquestrado pela ditadura para torturar suas vítimas e as famílias de suas vítimas. Porque a busca de um filho ou de um neto também é um tipo de tortura. Esse julgamento é importantíssimo porque a Justiça julgou e condenou os militares e seus cúmplices pelo crime que as avós estão denunciado há mais de 30 anos. Finalmente foi provado que existiu um grupo dedicado a roubar bebês e entregá-los a famílias ligadas aos militares. A sociedade sabe o que aconteceu, mas faltava a palavra da Justiça.
Como é sua relação com o seu pai?
MADARIAGA: Trabalhamos juntos (na associação das Avós da Praça de Maio) e nunca falamos sobre os 32 anos durante os quais estivemos separados. Pensamos apenas em estar juntos e aproveitar o presente que a vida nos deu. Em meu coração tenho um pedaço escuro, pois não conheci minha mãe e minha avó, mas o resto deve ser preenchido com vida.
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