“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. A frase lapidar de Bertold Brecht pode ser o ponto de partida para uma reflexão sobre a sensação de insegurança que, segundo recente relatório da ONU, é a maior do mundo e atinge 70% dos brasileiros.
São Paulo, a maior metrópole do país, registra 1% de todos os homicídios do mundo, mesmo tendo apenas 0,17% da população global. Os indicadores do estado de violência na capital – assassinatos, estupros, roubos de cargas e de veículos, arrastões – aumentaram seguidamente nos últimos meses (os homicídios cresceram 47% em junho), expandindo as correntes de medo e comoção, que desaguaram no assassinato de Tomasso Loto, um italiano de 26 anos que escolhera o Brasil para morar e trabalhar. Loto chegou na sexta e morreu no sábado, 22.
A constatação feita pelo secretário de Segurança Pública, coronel Ferreira Pinto, de que São Paulo vive uma “escalada de violência”, devendo se encaixar o homicídio do jovem imigrante na paisagem de eventos corriqueiros que ocorrem “em Cidade Tiradentes, em Itaquera e no Jardim Ângela”, não responde à questão central: qual a razão para o pico de violência no ciclo em que 30 milhões de brasileiros entram no andar da classe C?
Ou, para seguir a pista oferecida pelo dramaturgo alemão, não teria havido descompressão das margens para aliviar a carga de violência do rio? Algo soa estranho. O Brasil do resgate social da era Lula, cantado em prosa e verso porque transformou sua pirâmide em losango, com o adensamento das classes médias e o estreitamento das margens de pobreza, aponta para uma composição menos desigual, mais harmônica e, por isso mesmo, menos conflituosa.
Essa é a leitura apropriada de uma paisagem pintada com os traços da distribuição de renda e de menor desigualdade entre classes. A recíproca é verdadeira. Apregoa-se que a exclusão social desencadeia violência, por transformar a indignação, a contrariedade de amplos contingentes, a fúria de grupamentos marginalizados em linguagem e arma contra a ordem estabelecida.
Os excluídos da mesa social, explicam a sociologia e psicologia, tendem a ultrapassar as fronteiras da sociabilidade e da civilidade, distanciando-se de práticas civilizatórias da modernidade e se aproximando da barbárie. Atos radicais contra pessoas e organizações constituiriam reflexo de tal condição.
Como se pode aduzir, as hipóteses parecem lógicas. Mas não são as únicas que explicam a fenomenologia da insegurança e da harmonia social.
Observe-se, por exemplo, a aparente contradição entre a expansão do progresso social, aqui entendido como elevação dos padrões de vida de classes menos favorecidas, e o incremento da violência que ocorre no país. Basta analisar as taxas de criminalidade que se expandem no Sudeste, região que detém o maior PIB nacional. Desde a década de 70, os homicídios quadriplicaram em São Paulo e triplicaram no Rio de Janeiro. Mais de 100 pessoas morrem no Brasil, todos os dias, vitimados por armas de fogo.
No Rio, a taxa é maior que o dobro da média nacional. Os motivos são conhecidos. Ali, ao longo de décadas, travou-se uma luta renhida entre traficantes e forças policiais, dentro de uma complexa anatomia urbana, ocupada por favelas que, até bem pouco, eram consideradas território imune ao império da lei. Hoje, o “país” informal dominado pela criminalidade cede lugar ao Estado formal, que desenvolve árdua tarefa de pacificação nas comunidades.
São Paulo, por sua vez, é o maior aglomerado urbano do país, comportando uma população equivalente a de 10 cidades de mais de um milhão de habitantes. Sua cadeia de problemas deve-se, ainda, ao intenso processo de conurbação que liga a capital a 38 municípios no entorno, formando um agregado de cerca de 20 milhões de pessoas. Com tal gigantismo, não surpreende que a região seja abrigo das maiores carências nacionais, a partir da segurança pública.
São Paulo e Rio contabilizam mais da metade dos crimes violentos do país. Chega-se, nesse ponto, à indagação central: a elevação dos padrões de cidadania – pelo acesso de contingentes marginais ao mercado de consumo e aos direitos básicos dos cidadãos – contribui para a harmonia social? A considerar a planilha de expansão dos crimes, a resposta é não. Ora, se a resposta é negativa, que fatores explicam o aumento da violência? O primeiro deles é, seguramente, a ausência do poder do Estado.
O descaso e a omissão dos governos nas frentes dos serviços públicos essenciais são responsáveis pela institucionalização da violência. Agrupam-se nesse vácuo falhas nas áreas de prevenção da segurança, deficiências dos sistemas de saúde, transportes, habitação, educação etc. As carências abrem espaços para múltiplas formas de violência. Criminosos fazem do crime seu meio de vida. Bafejados por defasadas leis penais, entram em regimes de progressão da pena, ganham indulto e liberdade condicional. E assim retornam ao mundo criminoso.
Veja-se mais um dado da desorganização: há 514 mil pessoas aprisionadas no país e cerca de 500 mil mandados de prisão aguardando cumprimento, sendo 360 mil só no Sudeste. Que segurança se pode ter diante desse quadro?
Um tipo de violência leva a outro. O desarranjo decorrente da ausência dos braços do Estado induz parcelas sociais a descumprirem obrigações, desrespeitarem leis, fugirem ao império da ordem, como se pode constatar nas violações no trânsito ou nas teias de corrupção que se multiplicam nos subterrâneos da administração pública.
E o que dizer da violência do próprio aparato policial, cujas condições de vida digna deixam a desejar, a partir de uma miserável remuneração? A violência que viceja no seio das polícias decorre, pois, da violência institucionalizada, cujo responsável maior é o Estado. À guisa de conclusão, com um adendo à lembrança de Brecht: além das margens, ninguém diz violentas outras áreas que comprimem o rio.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação Twitter @gaudtorquato.
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