Por Alessandra Stanley em 24/07/2012 na edição 704
Reproduzido da Folha de S.Paulo/The New York Times, 23/7/2012; intertítulos do OI
Dois anos e meio depois do terremoto que devastou o Haiti, a vida neste país pode ser uma luta. “Nem pude comprar um presente decente de Dia das Mães para minha mãe”, queixou-se Soraya. “Acabei gastando minha mesada e comprando para ela uma passagem para Paris. Não é nada de especial, mas o que vale é a intenção, certo?”
Soraya é uma das personagens de um programa de humor da TV, Regards Croisés. Ela é uma caricatura de uma “zuzu”, ou garota rica e fútil da elite. As zuzus são muito comuns em Miami e em Paris, mas difíceis de encontrar nos morros de Porto Príncipe, onde fazem compras, vão à academia e a festas apenas atrás de muros altos com arame farpado e primaveras em flor. Elas se comunicam no “dialeto das zuzus” – um misto de crioulo, francês e inglês, falado em voz aguda e afetada. Todo sábado à noite, os haitianos se divertem, rindo da afetação de Soraya.
Regards Croisés (Pontos de Vista) está no ar há pouco mais de um ano e faz sucesso com os haitianos pobres e de classe média que vivem “morro abaixo”, como dizem as pessoas aqui. Os esquetes improvisados do programa, com seus tipos muito conhecidos – o professor pouco treinado, o cônsul volúvel – ironizam o cotidiano haitiano, as divisões de classe e as dificuldades enormes.
“Gatos” na rede elétrica
O Haiti é um país pobre, dependente de ajuda externa, rico em instabilidade política, corrupção e desastre. Numa paisagem televisiva árida, dominada por telenovelas mexicanas dubladas em francês e vídeos de rap cantados em crioulo, o programa permite aos haitianos rir de seus problemas e deles mesmos. Mas sua popularidade revela muito sobre as divisões sociais do país. Produzido com baixo orçamento, o programa é em grande medida ignorado ou desconhecido pela pequena elite haitiana. Funcionários humanitários estrangeiros e executivos haitianos da mídia local dizem que a população precisa de programas feitos no Haiti, para haitianos. Mas já existe um programa desse tipo no ar.
Em um episódio, Sophia Baudin faz a consulesa Sophia, chefe da embaixada americana que encontra razões totalmente arbitrárias – por exemplo, cabelo feio – para negar vistos a haitianos. Todos os candidatos a vistos de entrada nos EUA são rejeitados até que aparece um homem bonito, de pele clara. “Não preciso ver seus papéis”, diz a consulesa Sophia. E dá um visto a ele. Como os outros atores deRegards Croisés, Baudin costuma ser reconhecida quando anda na rua. “As pessoas gritam ‘Foi essa mulher que me negou um visto’”, contou. “Muita gente me odeia.” O personagem encontra eco entre as pessoas que fazem fila para pedir vistos na embaixada americana, que exige exames de DNA para verificar se elas de fato têm parentesco com as pessoas nos Estados Unidos que afirmam ser seus familiares. “É humilhante”, comentou a assistente social Jessie Paulemon, 36. “Conheço muita gente bem-sucedida que já foi rejeitada várias vezes sem critérios.”
Regards Croisés é transmitido pelo canal estatal Télévision Nationale d’Haïti. A fama do programa cresceu com vídeos no YouTube e páginas de fãs na internet. Os haitianos assistem ao programa na rua, em barbearias, em bancas de cerveja. Os moradores de favelas e acampamentos assistem à TV usando gatos improvisados na rede elétrica.
“Nunca perco o show”
O apresentador e produtor Georges Béleck é um dramaturgo que em 1992 fundou um grupo de teatro, Comédia Haitiana Sem Fronteiras. “Antes eu fazia dramas, mas depois do terremoto passei para o humor”, contou. “As pessoas já estavam chorando tanto na vida real -por que fazê-las chorar também no teatro?”
Na primeira hora do programa, que tem 90 minutos, Béleck entrevista escritores, cantores e políticos. Jennifer Septimus, 23, conta que Regards Croisés a ajuda a se distrair das preocupações. “Quando há eletricidade e a gente consegue sintonizar a TV, eu nunca perco o show”, disse.
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[Alessandra Stanley, do New York Times]
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