O GLOBO - 21/11
Quando passeio pelo Art Deco District esqueço os carros ridículos que passam pela rua e imagino os seus personagens, aqueles judeus de classe média de vidas densas e conturbadas
Fazia tempo que eu não vinha a Miami. Tenho sentimentos ambivalentes em relação à cidade, um misto de ternura e de boas lembranças com desgosto e vergonha alheia, mais ou menos como se ela fosse uma velha tia de quem gostei muito quando criança mas que ficou gagá, perdeu a compostura com o passar do tempo e hoje abusa dos brilhos e dos decotes, carrega na maquiagem e só anda em más companhias. É um erro. Como qualquer cidade mais ou menos viável, Miami é o que a gente quer que ela seja — desde que as férias acabem antes do encanto.
A culpa do erro não é exclusivamente minha. A coitada não goza de boa reputação; ou, por outra, goza de ótima reputação, mas sempre pelas razões erradas. É difícil amar uma cidade que se vangloria dos seus excessos, e em que a principal atividade turística é ir às compras. É difícil amar a cidade em que todos os políticos corruptos da América Latina compram mansões com os lucros dos seus “malfeitos”, como poeticamente se refere a nossa presidente àquilo que nosotros conhecemos em geral por palavras de baixo calão. É difícil amar esta cidade que serve de refúgio para os personagens mais desagradáveis do noticiário, todos os Thors que decidem dar um tempo longe até a poeira baixar.
Mas Miami também pode ser amável. É uma cidade que recuperou com amor os seus edifícios antigos, que tem lindos jardins e uma quantidade de pássaros interessantes. Tem algumas ruas que não dormem, longe dos shoppings tem um comércio engraçado e original, tem vida cultural.
A Miami do meu coração é aquela em que, nesta mesma Collins Avenue em que escrevo hoje à noite, viveu, de 1977 até a sua morte, em 1991, Isaac Bashevis Singer, um dos meus escritores favoritos. Quando passeio pelo Art Deco District esqueço os carros ridículos que passam pela rua e imagino os seus personagens, aqueles judeus de classe média de vidas densas e conturbadas que, fugidos da Europa ou do frio de Nova York, como ele, continuaram, aqui, o que era, afinal, a extensão da antiga vida dos shtetls desaparecidos.
Ninguém pode tirar de Miami a glória de ter visto nascer tantas dessas histórias maravilhosas, os últimos monumentos do Yiddish, uma língua fantasma.
Vim a Miami pela primeira vez em 1967, dez anos antes de Bashevis Singer se mudar para a cidade — o que, confesso, me assusta um pouco em relação à minha idade. Eu era garota, e meu Pai havia sido chamado para trabalhar como professor convidado na Universidade da Flórida, em Gainesville; Miami foi a primeira parada da família antes de seguirmos para a cidadezinha que seria o nosso lar durante um ano letivo. Não podia haver nada de mais diferente da Miami de hoje do que aquela cidade pequena de grandes hotéis, uma espécie de Copacabana mais modesta, mas com meia dúzia de Copacabana Palaces plantados à beira-mar.
Não consigo me lembrar de jeito nenhum do nome do nosso hotel, mas até hoje me lembro do cheiro. Eu não gostava muito nem de um nem do outro. Enquanto os hotéis glamourosos tinham nomes como Fontainebleau ou Royal Palm, o nosso tinha nome de gente, um Fulano de Tal (ou seria uma Fulana?), que ficaria melhor num hospital. O cheiro era o cheiro decente de um detergente qualquer, que se traduzia em limpeza, e não em aventura — mas para mim, já naquela época, viajar era a expectativa de cheiros novos. Esse gosto não vinha da vida real, naturalmente, porque até então eu mal tinha posto os pés fora de casa, mas dos livros que eu devorava e que me falavam de um mundo de sensações exóticas. Em nenhum deles, mas nenhum mesmo, o Lysoform entrava como elemento de atração.
Mais tarde, durante os anos da bolha da tecnologia, passei a vir a Miami uma ou duas vezes por mês. Não havia lançamento de produto, feira, congresso ou conferência que não se realizasse na cidade, espécie de capital oficiosa da América Latina. Os colegas de viagem eram quase sempre os mesmos — não havia tanta gente cobrindo informática ou telecomunicações no nosso continente —, mas os hotéis variavam tanto que, ontem à noite, caminhando pela Collins Avenue, percebi que já fiquei hospedada em praticamente todos os vizinhos do The Raleigh, onde estou agora.
A noite estava gostosa, com uma brisa fresca e uma lua cheia, e, a uma distância segura dos shoppings, me senti bem. Andei vários quarteirões, comprei revistas, fiz fotos e, finalmente, me sentei num barzinho para tomar um suco. Em todo o trajeto, não ouvi uma única palavra em inglês. As pessoas por quem passei falavam português, os porteiros dos hotéis e a garçonete falavam espanhol.
Enquanto esperava a mistura de mamão, laranja, abacaxi e agave (que, pelo que entendi, é o que se usa aqui como adoçante nas lojinhas “verdes”), contemplei as palmeiras da rua, iluminadas com capricho, e os hotéis com a sua velha dignidade restaurada. E senti uma onda de carinho por esta cidade que, afinal, tem tantas qualidades, e tem tanto para ver. É só olhar.
Quando passeio pelo Art Deco District esqueço os carros ridículos que passam pela rua e imagino os seus personagens, aqueles judeus de classe média de vidas densas e conturbadas
Fazia tempo que eu não vinha a Miami. Tenho sentimentos ambivalentes em relação à cidade, um misto de ternura e de boas lembranças com desgosto e vergonha alheia, mais ou menos como se ela fosse uma velha tia de quem gostei muito quando criança mas que ficou gagá, perdeu a compostura com o passar do tempo e hoje abusa dos brilhos e dos decotes, carrega na maquiagem e só anda em más companhias. É um erro. Como qualquer cidade mais ou menos viável, Miami é o que a gente quer que ela seja — desde que as férias acabem antes do encanto.
A culpa do erro não é exclusivamente minha. A coitada não goza de boa reputação; ou, por outra, goza de ótima reputação, mas sempre pelas razões erradas. É difícil amar uma cidade que se vangloria dos seus excessos, e em que a principal atividade turística é ir às compras. É difícil amar a cidade em que todos os políticos corruptos da América Latina compram mansões com os lucros dos seus “malfeitos”, como poeticamente se refere a nossa presidente àquilo que nosotros conhecemos em geral por palavras de baixo calão. É difícil amar esta cidade que serve de refúgio para os personagens mais desagradáveis do noticiário, todos os Thors que decidem dar um tempo longe até a poeira baixar.
Mas Miami também pode ser amável. É uma cidade que recuperou com amor os seus edifícios antigos, que tem lindos jardins e uma quantidade de pássaros interessantes. Tem algumas ruas que não dormem, longe dos shoppings tem um comércio engraçado e original, tem vida cultural.
A Miami do meu coração é aquela em que, nesta mesma Collins Avenue em que escrevo hoje à noite, viveu, de 1977 até a sua morte, em 1991, Isaac Bashevis Singer, um dos meus escritores favoritos. Quando passeio pelo Art Deco District esqueço os carros ridículos que passam pela rua e imagino os seus personagens, aqueles judeus de classe média de vidas densas e conturbadas que, fugidos da Europa ou do frio de Nova York, como ele, continuaram, aqui, o que era, afinal, a extensão da antiga vida dos shtetls desaparecidos.
Ninguém pode tirar de Miami a glória de ter visto nascer tantas dessas histórias maravilhosas, os últimos monumentos do Yiddish, uma língua fantasma.
Vim a Miami pela primeira vez em 1967, dez anos antes de Bashevis Singer se mudar para a cidade — o que, confesso, me assusta um pouco em relação à minha idade. Eu era garota, e meu Pai havia sido chamado para trabalhar como professor convidado na Universidade da Flórida, em Gainesville; Miami foi a primeira parada da família antes de seguirmos para a cidadezinha que seria o nosso lar durante um ano letivo. Não podia haver nada de mais diferente da Miami de hoje do que aquela cidade pequena de grandes hotéis, uma espécie de Copacabana mais modesta, mas com meia dúzia de Copacabana Palaces plantados à beira-mar.
Não consigo me lembrar de jeito nenhum do nome do nosso hotel, mas até hoje me lembro do cheiro. Eu não gostava muito nem de um nem do outro. Enquanto os hotéis glamourosos tinham nomes como Fontainebleau ou Royal Palm, o nosso tinha nome de gente, um Fulano de Tal (ou seria uma Fulana?), que ficaria melhor num hospital. O cheiro era o cheiro decente de um detergente qualquer, que se traduzia em limpeza, e não em aventura — mas para mim, já naquela época, viajar era a expectativa de cheiros novos. Esse gosto não vinha da vida real, naturalmente, porque até então eu mal tinha posto os pés fora de casa, mas dos livros que eu devorava e que me falavam de um mundo de sensações exóticas. Em nenhum deles, mas nenhum mesmo, o Lysoform entrava como elemento de atração.
Mais tarde, durante os anos da bolha da tecnologia, passei a vir a Miami uma ou duas vezes por mês. Não havia lançamento de produto, feira, congresso ou conferência que não se realizasse na cidade, espécie de capital oficiosa da América Latina. Os colegas de viagem eram quase sempre os mesmos — não havia tanta gente cobrindo informática ou telecomunicações no nosso continente —, mas os hotéis variavam tanto que, ontem à noite, caminhando pela Collins Avenue, percebi que já fiquei hospedada em praticamente todos os vizinhos do The Raleigh, onde estou agora.
A noite estava gostosa, com uma brisa fresca e uma lua cheia, e, a uma distância segura dos shoppings, me senti bem. Andei vários quarteirões, comprei revistas, fiz fotos e, finalmente, me sentei num barzinho para tomar um suco. Em todo o trajeto, não ouvi uma única palavra em inglês. As pessoas por quem passei falavam português, os porteiros dos hotéis e a garçonete falavam espanhol.
Enquanto esperava a mistura de mamão, laranja, abacaxi e agave (que, pelo que entendi, é o que se usa aqui como adoçante nas lojinhas “verdes”), contemplei as palmeiras da rua, iluminadas com capricho, e os hotéis com a sua velha dignidade restaurada. E senti uma onda de carinho por esta cidade que, afinal, tem tantas qualidades, e tem tanto para ver. É só olhar.
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