'302', uma série de televisão que desnuda cabeça, coração, corpo e membros de mulheres reais, pelo olhar de Jorge Bispo
17/09/2014 11h53 - Atualizado em 17/09/2014 13h02
“Mulher é um bicho muito engraçado. Ok, a gente gosta de ouvir elogio. Mas, se a gente não se achar bonita, não consegue sentir tesão em nós mesmas. Agora, quando você se acha bonita, por qualquer que seja o motivo, porque a luz de seu banheiro é boa, você sente mais tesão em tudo, você se relaciona com mais vontade”. Essa é a voz de Patrícia ou, quem sabe, a voz de todas nós.
Encostada na parede branca, junto a uma tomada, ela se desnuda aos poucos. Não retira só a roupa por trás do biombo. Ela descasca e expõe, suavemente, camadas e camadas de dúvidas, emoções, inseguranças sobre o próprio corpo e nossos desejos femininos. São devaneios sobre a fragilidade e a verdade de uma nudez que não tem o objetivo de excitar. Só provocar o status quo, os padrões de comportamento e beleza.
Patrícia é uma morena de beleza exótica. Uma das personagens de ‘302’, série de episódios para a TV concebidos por Jorge Bispo, fotógrafo que já fez capas e ensaios sensuais de Playboy, Trip, Vip e outras. Cansou um pouco da fotografia “montada, erotizada, fake” e tentou, nos últimos anos, tornar seu trabalho cada vez mais simples, “tirando excessos e bengalas”. Bispo define assim a série: “Um dia abri a casa para fotografar mulheres reais. A ideia cresceu e o apartamento passou a ser meu e delas, pois cada foto conta uma história. 302”. Para elas, é também um exercício público de autoconhecimento. É a primeira vez para várias, como se deixassem, no chão do apartamento vazio, sua virgindade, com um fio de lágrima que escorre sem pedir permissão à dona.
As fotos primeiro geraram um livro. Mas as mulheres nuas e sem retoques, com suas curvas, veias, lábios, celulites, estrias, tatuagens, piercings íntimos, seus seios pequenos e grandes, suas bundas pequenas e grandes, seus pelos raspados ou abundantes, seus olhares maquiados ou lavados, suas gorduras e seus ossos, não deveriam continuar aprisionadas em imagens paradas e mudas. Havia histórias por trás, escondidas por fotos que congelavam um momento de timidez, autoafirmação, constrangimento, vaidade ou disfarce.
Por isso, elas deixaram de ser modelos de um dia ou de uma pose para se tornar protagonistas de pequenos filmes-verdade, onde também aparecem vestidas e em seu cotidiano, dando depoimentos sobre a vida em família, no trabalho e no amor. Neste sábado, à meia-noite, o Canal Brasil começará a apresentar a série. Acompanhei, há uns meses, a produção de um episódio no 302, e também assisti a sete deles já editados.
A chegada ao apartamento segue o mesmo roteiro. Não se sabe quem está mais sem graça: as mulheres ou Bispo. Silêncios ou risos traem o nervosismo. Ele oferece água, suco ou vinho, uísque, tenta não ser invasivo. Pergunta se querem ir ao toalete, antes de tirarem a roupa no biombo. Não busca se fazer de íntimo nem distante. Deixa claro que, ali, ele não orienta nada, que a parede branca é toda delas, que podem posar ou não, sorrir ou chorar, não importa. Precisam apenas ficar perto da tomada, um símbolo do 302. A tomada da energia, do choque, da luz e da escuridão.
Eu ali, como espectadora à margem, no sofá, percebi que algo da mulher passa como corrente elétrica para o Bispo, e o influencia. O suor escorre do rosto do fotógrafo-artista-documentarista. Ele precisa criar uma empatia sem que ela se sinta dirigida. Sua câmera e a de sua equipe perscrutam os detalhes em closes, passeiam pelas reentrâncias e protuberâncias, dissecam superfícies e entranhas, descobrem hesitações e certezas. A mulher também é filmada. Depois da sessão de fotos, é entrevistada pela equipe feminina que assessora Bispo - são diretoras escolhidas pessoalmente por Bispo.
A mulher sabe que será vista na televisão. Entrará na sala de estar de desconhecidos - e dos parentes. É um ato de coragem e ousadia.
No máximo, Bispo pede que as muito tensas relaxem. Ou elogia certos movimentos: “Lindo assim”. Uma nunca é igual à outra. É assim no mundo real. “Nem entendi quando ele falou: relaxa as mãos”, disse Patricia depois da sessão de fotos. “Como assim, eu estava ali toda nua, e eu estava tensa nas mãos?”
É curioso como as extremidades das mãos e dos pés denunciam o que se passa por dentro da gente. Se alguém fotografado com roupa não sabe o que fazer com as mãos e frequentemente cruza os braços para se proteger, imagine a mulher nua, em pé, encostada na parede branca, junto à tomada. Muitas saem do biombo com as mãos cruzadas na... x*x*t@ – posso escrever assim? Não é vagina, nem b..... ‘Órgão genital’ é terrivelmente médico, não faz jus.
Aos poucos, elas se soltam, se alongam, umas mais que as outras. Aos poucos, também, falam, falam...e falam. E a maioria se orgulha de ter conseguido estar ali. Em carne viva. Consideram uma vitória, uma conquista, um ato libertador.
Bispo chama essas mulheres de “normais”. Não são. Não somos normais, nenhuma de nós. As personagens do ‘302’ são todas muito especiais. “Normal”, para a sociedade, é hoje, infelizmente, a mulher fotoshopada da capa de revista, dos ensaios que nos transformam em bonecas de cera. Essa mulher “normal”, portanto, não existe, virou um padrão ET. As personagens do 302 são de carne e osso. Às vezes muito mais carne que osso. Opulentas e surpreendentes. Feitas de dor e riso, de lembranças e sonhos.
A personagem que mais me enfeitiçou – dos episódios que eu vi – foi a cadeirante, Luciana, que sofre de uma doença degenerativa, distrofia muscular. “Cadeirante”, o termo politicamente correto, nem é mencionado por Luciana, a bela Luciana, de cabelos compridos e seios fartos, com o sorriso talvez mais desconcertante de todos, o piscar de olhos sapeca, a energia da auto-superação, a história que hipnotiza, os tristes abortos espontâneos. O termo que Luciana usa é “deficiente” mesmo, sem autopiedade.
Inacreditável que algumas se queixem do corpo quase perfeito, enquanto Luciana nos lança um olhar de desafio e diz que se achou linda. “Acho que sou uma gordinha gostosa”. Ela se refere à cadeira de rodas como “apenas um detalhe, uma extensão de meu corpo”. O trabalho de se expor lhe devolveu, segundo Luciana, uma autoestima que andava em baixa. “Eu vim para causar. Em cima da cadeira tem uma mulher, tem uma pessoa com vontade de viver, com sentimentos e cheia de amor para dar”.
Não sei direito o que esperava do ‘302’. Nu frontal é uma audácia na televisão, sem ser ficção ou pornô. Esperava, portanto, um programa original. Só. Não mais que isso. Mas ‘302’ vai muito além. E, como diz o próprio Bispo, o mérito é delas. Porque mulher é um bicho engraçado que fala muito, em profusão. Muito mais que os homens. E fala de seu universo interior, muitas vezes sem pensar, e com uma naturalidade e articulação que me parece impossível aos homens. Mesmo que comece fechada, acaba por esquecer a câmera e despeja tantos sentimentos e confidências que comove a si própria e a nós, testemunhas de suas histórias particulares.
Polly, muitos quilos acima de seu peso antigo, negra, charmosa, engraçada e profundamente sincera, fala sobre os preconceitos, sobre a necessidade de se impor, se surpreende com a sensação de liberdade ao se colocar pelada, diz que uns dias se acha linda, outros se acha enorme, chora quietamente no fim do depoimento . Diz: “Poxa, eu não queria chorar”. E desaba numa de suas gargalhadas calorosas.
‘302’ é para ver e se emocionar junto com elas.
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