Demétrio Magnoli, O Globo
“Não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace os ratos.” A linha célebre, pronunciada em 1961 por Deng Xiao-Ping, produziu um gato furta-cor, que exerce efeitos ideológicos hipnóticos sobre a direita ultraliberal e a esquerda pós-soviética.
Milton Friedman enxergou na China (e no Chile de Pinochet) um laboratório de ensaios para a doutrina da liberdade econômica absoluta, não limitada pela teia de direitos sociais e prerrogativas sindicais tecida no Ocidente.
A esquerda irreformável, por sua vez, enxerga na China uma nova alternativa ao capitalismo, um contraponto aos Estados Unidos e um modelo ideal de concentração de poder nas mãos do Estado.
Hoje, o gato chinês encontra-se diante de uma encruzilhada histórica: para continuar a caçar os ratos, ele precisa reinventar-se, frustrando seus admiradores nos dois polos do espectro político.
A economia é o desafio número um. A fórmula do capitalismo de Estado propiciou um salto impressionante do PIB per capita, de cerca de US$ 1.000 em 1992 para quase US$ 8.400 em 2011, inscrevendo a China entre os países de média renda e resgatando milhões de camponeses da esfera da miséria.
Contudo, o “milagre” realizou-se a partir de um patamar inicial muito baixo e na moldura favorável da expansão global financiada à base de crédito e endividamento. O ciclo da “acumulação primitiva” está se fechando no compasso do aumento dos custos do trabalho. Fábricas começam a se transferir das províncias litorâneas para o interior, em busca de mão de obra mais barata. As economias americana e europeia não são capazes de continuar a absorver o excedente chinês de poupança produtiva.
Na China, encerrou-se a era do crescimento anual de dois dígitos e, para evitar uma trágica retração, a liderança que assume o poder tem a missão arriscada de buscar um novo equilíbrio por meio do estímulo à demanda interna.
A demografia é o segundo desafio. Sob a “política do filho único”, a China desviou-se da curva normal de transição demográfica.
Nas últimas quatro décadas, a política antinatalista reduziu o incremento populacional em 300 milhões de pessoas. Em termos absolutos, a população chinesa começará a declinar antes de 2030. A idade média dos chineses aproxima-se de 35 anos. A proporção de idosos, com mais de 60 anos, saltará de 12,5% em 2010 para 20% em 2020.
Na ausência de um sistema abrangente de seguridade social, o fenômeno gera poupança familiar compulsória, improdutiva e de longo prazo, comprimindo o consumo potencial. Jamais, na história, um país envelheceu antes de enriquecer.
A redução da população ativa já se iniciou e experimentará aceleração. Verifica-se oferta insuficiente de mão de obra em algumas regiões e, de modo geral, a tendência ao envelhecimento contribui para o aumento dos custos do trabalho.
O terceiro desafio é ambiental — ou, precisamente, socioambiental. A matriz energética chinesa baseia-se no carvão mineral, responsável por 66% do consumo total. A queima de carvão em termelétricas tradicionais provoca elevadas emissões de gases-estufa e contamina o ar das cidades e regiões industriais.
Nas periferias urbanas e nas áreas de extração mineral, a contaminação dos cursos fluviais e dos solos atinge níveis alarmantes. A construção de hidrelétricas, rodovias e ferrovias causa remoções em massa de populações e acende fogueiras de desespero.
A imagem lendária de coesão social e disciplina confuciana nunca correspondeu à realidade chinesa. Atualmente, porém, o país conhece extensiva turbulência fragmentária, que se manifesta na forma de milhares de motins locais. A questão da liberdade é o fio subterrâneo que interliga os desafios da economia, da demografia e da ecologia.
Em 1989, a Primavera de Pequim, na Praça da Paz Celestial, foi suprimida a bala. Em seguida, com o relançamento das reformas econômicas, Deng Xiao-Ping conseguiu firmar um contrato social temporário por meio do qual os chineses trocaram a demanda de liberdade pela expectativa de aumento sustentado dos níveis de renda e consumo.
Hoje, quase um quarto de século depois, o intercâmbio tornou-se inviável, pois a liberdade converteu-se em condição tanto para a estabilidade quanto para a prosperidade.
Greves operárias riscam, ano após ano, o cenário da China. Mais recentes são os protestos da nova classe média, que é o atual alicerce social do Partido Comunista. Na cidade portuária de Ningbo, jornadas de revolta provocaram o congelamento de um projeto de expansão de um complexo químico.
Antes, em julho, manifestações de massa bloquearam a construção de uma refinaria de cobre em Shifang e de um duto de esgoto em Qidong.
Na era das mídias sociais, os microblogs perfuram a muralha da censura estatal e descerram o véu que recobre a corrupção desenfreada no círculo interno do poder. Há três meses, sites oficiais republicaram um relatório destinado a altos dirigentes do Partido que alerta para a hipótese de “tumultos sociais generalizados ou revolução violenta”.
A expressão “armadilha da renda média” circula nos textos analíticos dos acadêmicos ligados à elite dirigente.
Superada a etapa da “acumulação primitiva”, a China só evitará uma prolongada estagnação se engendrar um ciclo de expansão baseado no consumo interno, no investimento privado doméstico, na concorrência e na inovação.
Tudo isso depende de segurança jurídica, direitos de propriedade, redes de proteção social, mecanismos de fiscalização do governo e vigência das liberdades públicas básicas. No fundo, o Partido está diante do supremo desafio de sabotar o sistema totalitário que assegura sua hegemonia.
O ex-primeiro-ministro Zhu Rongji, um visionário, pediu a realização de eleições competitivas para a direção do Partido. Ele sabe que já é hora de subverter a lição de Deng: a cor do gato tem importância crucial.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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