segunda-feira, 29 de outubro de 2012

DONA HELOISA



Luiz Berto
Do Ginásio até a Praça do Maurity, era questão de apenas um tanto de metros. Caminho reto e curto, encasariado, sem questionamentos nem surpresas. Uma dentre as muitas ruas da nossa terra. Isso para quem não procurasse atinar a avenida de ternura e encantações que se abria na cabeça daquele menino, seguindo sua professora, carregando a pilha de cadernos com os deveres de casa.
Aquele menino era eu. A professora, Dona Heloísa.
Ao findar as aulas, por apressado, enxerido e ansioso, eu ganhava sempre o direito de carregar o monte de cadernos, do Ginásio até a casa da mestra, na Praça do Maurity. E aí, então, começava a caminhada. Lenta, arrastada, ela na frente, eu atrás. Não trocávamos palavras. Havia uma timidez e um silêncio que erigiam uma distância respeitosa entre a professora e seu pequeno aluno. Ela andava devagar, gozando a fresca que as sombras das casas propiciavam. E eu me sentia magicamente ligado àquela figura miúda e frágil, dócil e delicada, captava no ar o seu amor pelo ofício e pelos alunos, e me encantava com a sabedoria imensa que ela esparramava em abundância, numa idade em que o mundo é um vasto território a ser descoberto.
Tocado por suas frágeis mãos brancas, velejei pelos continentes, apreendi os oceanos, mergulhei nos mistérios do oriente e medi as distâncias entre os planetas. Decorei o Brasil, seus rios, capitais e florestas, e estudei curioso as raças que compõem o nosso povo.
Captei meus primeiros verbos, substantivos e adjetivos nos potes fartos de suas mãos em concha. E matutei, quebrando a cabeça, nas primeiras lições de tabuada, que ela, com tanta sapiência, distribuía na sala. Foi ela quem corrigiu e orientou as minhas primeiras escritas, que naquela época eram chamadas de “Descrição” – quando a gente criava uma história a partir de umas paisagens coloridas penduradas na parede -, ou “Dissertação” – quando desenvolvíamos um tema por ela dado.
Um farol e um sino, uma bússola segura, um remanso de ternura e bondade, uma seta apontando um caminho que perdia seus contornos num futuro que eu imaginava seguro, mercê da proteção que sua mestrança me propiciava. O cordão que me ligava àquela pessoa querida que ia caminhando à minha frente tinha muito de encantação e mistério, e me inundava de uma sensação de paz e solidariedade que permanece viva em mim até hoje. E me toca com grande intensidade, sempre que volto a Palmares e refaço aquele percurso do Ginásio até a Praça do Maurity.
Só que, hoje em dia, eu passo pela calçada de sua casa e não mais escuto o “muito obrigada e até amanhã” que ela me dirigia enquanto eu lhe entregava os cadernos. Lembro-me muito bem que havia um piano na sala, e que ela se perdia, perfil esfumaçado, nas sombras da casa, enquanto eu me afastava feliz, gozando aquele serviço que atestava, na prática, a imensa admiração e carinho que eu lhe votava.
Hoje, dela sei que partiu. Encantou-se nas brumas, da mesma forma que eu a via sumindo nas sombras da sala. Mais um mosaico brutalmente arrancado na arquitetura da Palmares que eu trago no peito e que carrego para qualquer lugar aonde vou. Um mosaico vivo, colorido e terno. Tenho consciência e convicção, plena, total e absoluta de que a capacidade que me permite, bem ou mal, desenvolver estas linhas e me dá condições de exercitar as artes de ficcionista, é fruto direto do embasamento proporcionado pelas lições que dela recebi, num tempo da vida em que o menino é apenas uma inspiradora promessa do homem que virá a se instalar em seu corpo e em sua cabeça.
Voltei a Palmares e encontrei o seu nome num logradouro público. Naquela praça do mercado, recentemente construída, lá no fim da Ladeira do Matadouro (era esse o nome no meu tempo). Homenagem justa. Mas, para o menino que carregava os cadernos, muito modesta e em total desproporção com aquela figura miúda e protetora que seguia à sua frente.
Dona Heloísa, minha professorinha de uma infância feliz. Uma paixão que vai durar enquanto eu viver.
Um homem esquece sua primeira namorada. Mas ele jamais será capaz de olvidar a sua professora.
(Do livro “A Prisão de São Benedito”, 4ª edição, 1997, Editora Bagaço)

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