Reportagem de Marcelo Sakate, de Madri, publicada em edição impressa de VEJA
O DIA A DIA DE UMA RECESSÃO
Os espanhóis se ajustam à realidade de cinco anos de declínio econômico cortando despesas e substituindo os bares pelas ruas
Em uma noite abafada de verão, a Praça Puerta de Moros, no bairro La Latina, em Madri, está tomada por grupos de amigos. Com latinhas de cerveja e pacotes de batatas fritas nas mãos, eles cultivam o hábito espanhol do botellón. A crise econômica mais grave em décadas, no entanto, fez do hábito social de encontrar os colegas na rua a principal forma de entretenimento dos jovens espanhóis. “Não me lembro da última vez em que nos vimos em um bar. Para economizar, só nos encontramos nas praças”, conta a atriz Laura González, 34 anos, ao lado de quatro amigos.
[O botellón volta e meia se transforma em baderna, causando brigas e levando moradores a chamar a polícia. Em algumas cidades, é alvo de atenção especial das autoridades.]
É um padrão de comportamento que se alastra. Oito em cada dez espanhóis dizem ter mudado seus hábitos de consumo por causa da recessão e do aumento do desemprego, que atinge um em cada quatro trabalhadores. A rotineira ida ao supermercado é outro exemplo.
As marcas próprias das redes ganharam apelo graças aos preços baixos, em detrimento de mercadorias de fabricantes tradicionais. Já representam quase a metade da cesta de compras.
A economia encolhe há 9 meses. Desaba a venda de automóveis
É um comportamento similar ao dos brasileiros no passado, em tempos de colapso econômico. Produtos de valor mais elevado, cujas vendas dependem da confiança dos consumidores no futuro do país, sofrem mais. No ano passado, foram vendidos na Espanha 787 000 carros novos, a metade da quantidade de 2006.
A economia espanhola encolhe há nove meses. Números divulgados na semana passada mostram que boa parte das maiores potências europeias voltou a entrar em recessão, ao acumular dois trimestres consecutivos de queda na atividade. O PIB da Espanha deverá encerrar este ano com o mesmo tamanho que tinha em 2007 – ou seja, terá acumulado meia década perdida.
Na construção civil, o setor que mais cresceu nos anos dourados do país, o número de trabalhadores retornou ao patamar de 1998. As lojas, os bares e os restaurantes sobrevivem em grande medida graças aos turistas estrangeiros (o país é o quarto destino mais visitado do mundo). A mudança de hábitos dos espanhóis reflete a queda na renda da população.
O gasto médio total por domicílio caiu 14% entre 2007 e 2010, de 25 400 euros para 21 800 euros ao ano. As despesas diminuíram em dez das doze categorias de consumo (apenas educação e moradia foram poupadas). O movimento em bares, restaurantes e hotéis foi reduzido em 23%, e 12000 estabelecimentos fecharam as portas em três anos.
Relata o catalão Ignacio Sala, diretor da agência de turismo e entretenimento on-line Atrápalo: “Os espanhóis viajam cada vez menos e escolhem destinos próximos”. As viagens internacionais caíram 15% no último ano, enquanto o turismo doméstico cresceu 6%, segundo dados oficiais. “Em compensação, subiu a procura pelo lazer urbano, como spas e espetáculos”, diz ele.
Não que as atividades culturais estejam incólumes. Ao contrário, entraram no pacote de ajustes das contas públicas. Para cinemas e teatros, o principal tributo espanhol, o imposto sobre valor agregado (IVA), subiu de 8% para 21%. O fundo público que financia as produções cinematográficas teve redução de 35% na sua verba. No instituto de apoio às artes cênicas e à música, o corte é de 17%.
O anúncio causou revolta entre os artistas. “É uma punhalada na cultura”, disse o ator Javier Bardem, que participou de um protesto em Madri em julho.
As manifestações populares já se incorporaram à rotina das cidades, com adesão maciça do funcionalismo. Inicialmente imunes à crise, graças à estabilidade no emprego e aos rendimentos intactos, os servidores públicos se tornaram o alvo das medidas de austeridade do novo governo, do conservador Mariano Rajoy [, no poder desde dezembro passado].
O objetivo é restabelecer as condições para que o país volte a ser competitivo (o déficit nas contas públicas foi de 8,5% do PIB em 2011, o terceiro maior entre as 27 economias da União Europeia). O governo suspendeu o salário de Natal, um dos dois pagamentos extras que os funcionários recebiam, e reduziu o número de folgas e o valor do seguro-desemprego. Ao atingir o funcionalismo, Rajoy amplificou o sentimento de que a crise, desta vez, é para todos.
Em um outro efeito da derrocada na economia, em 2011, pela primeira vez em 25 anos, a população espanhola diminuiu de tamanho. Mais de meio milhão de pessoas, na maior parte estrangeiras, saíram do país, superando a entrada de 460.000. O saldo negativo é gritante para um país que se habituou a ser um receptor de estrangeiros nas últimas décadas.
Agora são os jovens espanhóis que pensam em buscar uma sorte melhor no exterior. Marina Lledó, 22 anos, concilia as sessões de piano e os ensaios de canto e de teatro com a jornada de meio período em uma loja de instrumentos musicais, enquanto faz planos para morar em São Paulo no próximo ano. Seu pai viveu no Brasil por mais de vinte anos. Ela conta que a crise foi o empurrão necessário para transformar em decisão o que era apenas uma ideia. Afirma Marina, resignada: “Acho que terei um futuro mais promissor, com mais oportunidades de trabalho”.
Os jovens, como ela, são os mais atingidos pela crise. Metade deles está fora do mercado de trabalho e sobrevive com bicos e a ajuda dos pais. Tão cedo os bares espanhóis não voltarão a lotar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário