quarta-feira, 20 de junho de 2012

DATA VÊNIA O ataque à defesa



Por Carlos Brickmann em 19/06/2012 na edição 699 - Observatório de Imprensa
Tortura nunca mais? Não se sabe: há cada vez mais críticas à anulação de provas obtidas por meios ilícitos. No momento, as críticas se concentram em interceptações telefônicas ilegais; mas, meios ilícitos por meios ilícitos, uns bofetões, um ou outro choque, algumas queimaduras de cigarro também o são. E uma pesquisa recentíssima de uma organização séria, o Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo, mostra que 47,5% da população do país são favoráveis à aceitação, pela Justiça, de provas obtidas via tortura.
Há um fato visível: em grande número de casos, a roubalheira é visível, mas a Justiça anula as provas ilegalmente obtidas. A opinião pública fica revoltada, e tem toda a razão. Joga-se então a culpa nos “bons advogados”, como se ser bom profissional fosse um defeito, na “leniência da Justiça” – e a imprensa tem papel importante nessa distorção da verdade. Porque o erro habitualmente não está na ação dos advogados, nem nas decisões judiciais, mas nas investigações preguiçosas ou malfeitas da polícia e do Ministério Público. A investigação foi substituída pelo grampo – como, nos tempos da ditadura, as investigações tinham sido substituídas pela tortura. Investigar dá trabalho e exige competência.
A última moda é criticar advogados por defender clientes cuja fonte de renda seja ilegal; portanto, os honorários da defesa seriam pagos com dinheiro ilícito. Há aí um erro de raciocínio: sem que o cliente seja julgado, como considerar que sua fonte de renda é ilegal? Como considerar que o dinheiro que irá pagar os honorários é ilícito? Essa decisão quem toma é a Justiça; e só o fará depois do julgamento, com o réu devidamente defendido, na forma da lei.
A moda da crítica aos advogados se avolumou com a informação (não confirmada: pode ser verdadeira, mas ninguém a assumiu) de que Márcio Thomas Bastos estaria cobrando R$ 15 milhões de Carlinhos Cachoeira para defendê-lo. Não é uma quantia tão fora assim dos padrões do mercado: há muitos e muitos anos, os advogados Eduardo Alckmin e Antônio Carlos “Kakay” de Almeida Castro receberam honorários de R$ 32 milhões, pela atuação num caso que terminou em acordo da Caixa Econômica Federal com um fundo de pensão. Um bom advogado amigo deste colunista disse que, para defender um dos possíveis alvos da CPMI, cobraria algo como R$ 10 milhões. E lembrou que esse dinheiro não se refere a um trabalho curto: são casos que podem ficar dez anos na Justiça, e os honorários devem remunerar o tempo que for consumido.
No caso Márcio Thomaz Bastos-Carlinhos Cachoeira, há entretanto um fato que merece maior discussão: a investigação foi efetuada pela Polícia Federal, cujo chefe era o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Não há impedimento legal para que Márcio, cumprida a quarentena legal, cuide do caso. Mas deveria existir algum impedimento, em casos desse tipo? Há gente séria que pensa assim e apresenta bons argumentos em defesa dessa tese.
Uma boa questão para a OAB discutir.

Do mestre ao mestre
Certa vez, o advogado Evaristo de Moraes escreveu a seu amigo Ruy Barbosa pedindo-lhe opinião sobre o convite que recebera para defender Mendes Tavares, inimigo político de Ruy. A resposta de Ruy Barbosa trouxe a seguinte recomendação: “Recuar ante a objeção de que o acusado é ‘indigno de defesa’ era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas”.

Erro de função
Duas cartas publicadas num grande jornal a respeito da atuação de Márcio Thomaz Bastos como advogado de Carlinhos Cachoeira chamaram especialmente a atenção deste colunista. Uma critica o jornal por ter publicado um artigo de Márcio – como se, entre as funções da imprensa, não estivesse a de abrir espaço para mostrar os diversos lados de uma questão. Outra critica Márcio Thomaz Bastos por “aceitar defender um suposto contraventor e, para tanto, receber um dinheiro cuja origem é duvidosa ou criminosa”. Se nem o leitor tem certeza de que Cachoeira seja um contraventor – tanto que o chama de “suposto contraventor” – como conclui, antes de qualquer decisão da Justiça, que a origem do dinheiro “é duvidosa ou criminosa”? Pior: no complexo de negócios de Carlinhos Cachoeira, há empresas legais. Também neste caso o dinheiro tem origem “duvidosa ou criminosa”?
Mas o que chama a atenção nesta carta, principalmente, é a conclusão: “O foco do Ministério da Justiça, que Márcio Thomaz Bastos comandou, não é exatamente julgar e condenar os criminosos e contraventores?”
Não, não é; e o jornal perdeu uma excelente oportunidade de esclarecer o tema. O leitor levado a erro tende a colocar culpas em quem não as tem e a absolver quem deveria ser o responsável por elas.
Quem “julga e condena” ou “julga e absolve” é o Poder Judiciário. O Ministério da Justiça faz parte do Poder Executivo. O nome Ministério da Justiça se presta a equívocos, e melhor seria se fosse “Ministério dos Assuntos Jurídicos” (aliás, quando foi criado, em 1922, seu nome era “dos Negócios da Justiça”. Sua função não é condenar e julgar: é tratar de temas ligados à ordem jurídica, cidadania e garantias pessoais – que passam por imigração, direitos de índios, política nacional de arquivos. No total, tem 16 atribuições diversas, nenhuma das quais invadindo a competência da Justiça, o que seria ilegal.

O risco da grande onda
Os meios de comunicação estimulam esse tipo de pensamento, às vezes por motivos ideológicos, às vezes por sensacionalismo, às vezes porque é mais fácil reagir com um “esfola” aos gritos de “mata!” em vez de tentar debater serenamente o tema. E ideias do tipo “a polícia prende mas a Justiça solta” são perigosíssimas. O problema é que boa parte da opinião pública só percebe esse perigo quando a Polícia prende e a Justiça já não pode soltar.

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