CARLOS VIEIRA
Inicio escrevendo Lispector, Clarice! Clarice não é linear, lógica, positivista, nem dar respostas, muito pelo contrário – ela derrama no leitor questões e questões que obrigam a lê-la vivendo uma experiência emocional.
No momento estou lendo um instigante livro de Carlos Mendes de Sousa – Clarice Lispector Pinturas. Editora Rocco, 2013. A leitura desse livro remete ao leitor entrar de cabeça na obra provocante da nossa escritora. À medida que adentro ao conteúdo e começo a observar e sentir suas pinturas, algo me comove, retira-me do sério, da atitude de comodidade e me joga num mundo de questões existenciais, medo, curiosidade e desejo de não mais parar a leitura. Deve ser por isso, que um amigo outro dia afirmou de uma maneira categórica: “Essa mulher era louca, eu não consigo continuar a leitura!”.
Clarice traz em seus escritos as vicissitudes do viver, entre a vida e a morte, delineando e tirando de si mesma, conjecturas imaginativas e racionais a respeito da dor humana. Ninguém incorpora seus textos impunemente, no mínimo entrando num estado de excitação, angústia e às vezes desespero. Num fragmento de um de seus instigantes livros, escreve: “Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna um fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os ‘fatos’? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é por isso que luto para alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.” Então, é essa Clarice provocadora de pensar e sentir a nossa existência que destaco nesse escrito.
Vejamos, por exemplo, alguns títulos de seus quadros, antes pensando no que a própria autora escreveu sobre sua arte de pintar: “Não sou pintora, mas gosto de pintar”. Talvez seja essa afirmativa o segredo de sua arte. Quando a gente já sabe o que é, a possibilidade de mentir que é torna-se possível. Não ser é o universo de Clarice, em busca do ser, da capacidade de admitir que na vida sempre estamos “sendo”. Não somos e jamais seremos obra terminada, pois quando se termina, quando se acha que já achamos algo, estamos no início da própria fossilização. Clarice é aberta, escreve convivendo com dúvidas, incertezas e mistérios, como queria Keats definindo Shakespeare a respeito da “capacidade negativa” de um homem. Devemos negar, esquecer para que o novo se crie, caso contrário, estamos sempre repetindo numa atitude abortiva da capacidade de pensar.
Pois bem, e os temas de suas pinturas? Vamos lá: “Cérebro adormecido”, “Eu te pergunto por quê?”, “Perdida na vaguidão”, “Tentativa de ser alegre”, “Medo”, “Luta sangrenta pela paz”, “Escuridão e luz: centro da vida”, “Raiva e reindifição ”, “Pássaro da liberdade”, “Caos, metamorfose, sem sentido” e “Ao amanhecer”. Pinturas feitas no ano de 1975, para citar algumas, mas para frisar as questões que, sem dúvida, perpassam seus quadros e nos remetem aos seus textos.
É impossível ler esse livro de Carlos Mendes de Sousa sem voltar aos textos de Clarice, ainda que a angústia aumente e arrebate a um estado de estranhamento e felicidade instantânea. Em “Água Viva”, um monólogo criativo de Clarice, encontramos fragmentos incômodos, mas ricos de reflexão: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos.” ... Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se veem da janela do trem.”... “Tenho que pagar o preço. O preço de quem tem um passado que só se renova com paixão no estranho presente. Quando penso no que vivi me parece que fui deixando meus corpos pelo caminho.”... Eis que de repente vejo que não sei nada. O gume de minha faca está ficando cego? Parece-me que o mais provável é que não entendo porque o que vejo agora é difícil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim e que ainda não tem pensamentos correspondentes, e muito menos ainda palavra que a signifique. É mais uma sensação atrás do pensamento”. Carlos Mendes afirma em seu livro: “Não se tratará propriamente de pretender ler a obra a partir das pinturas, mas lê-las com as pinturas”.
Pois bem, caro leitor, o livro sobre as pinturas de Clarice e suas obras é um convite à reflexão nesse nosso mundo de consumo, de tecnocracia e de incapacidade de ser humilde e civilizado. Convivemos com governantes e políticos que usam seu poder para transformar em crenças, facções fundamentalistas, atitudes de onisciência e arrogância, minimizando a condição humana traduzida com respeito, sofrimento e sabedoria nas obras de Clarice. “Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama”. Estamos cheios de pessoas que pensam que a onisciência, a onipresença e a onipotência existem. Essa é a lição de Clarice que pintava e sabia que não sabia pintar.
No momento estou lendo um instigante livro de Carlos Mendes de Sousa – Clarice Lispector Pinturas. Editora Rocco, 2013. A leitura desse livro remete ao leitor entrar de cabeça na obra provocante da nossa escritora. À medida que adentro ao conteúdo e começo a observar e sentir suas pinturas, algo me comove, retira-me do sério, da atitude de comodidade e me joga num mundo de questões existenciais, medo, curiosidade e desejo de não mais parar a leitura. Deve ser por isso, que um amigo outro dia afirmou de uma maneira categórica: “Essa mulher era louca, eu não consigo continuar a leitura!”.
Clarice traz em seus escritos as vicissitudes do viver, entre a vida e a morte, delineando e tirando de si mesma, conjecturas imaginativas e racionais a respeito da dor humana. Ninguém incorpora seus textos impunemente, no mínimo entrando num estado de excitação, angústia e às vezes desespero. Num fragmento de um de seus instigantes livros, escreve: “Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna um fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os ‘fatos’? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é por isso que luto para alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.” Então, é essa Clarice provocadora de pensar e sentir a nossa existência que destaco nesse escrito.
Vejamos, por exemplo, alguns títulos de seus quadros, antes pensando no que a própria autora escreveu sobre sua arte de pintar: “Não sou pintora, mas gosto de pintar”. Talvez seja essa afirmativa o segredo de sua arte. Quando a gente já sabe o que é, a possibilidade de mentir que é torna-se possível. Não ser é o universo de Clarice, em busca do ser, da capacidade de admitir que na vida sempre estamos “sendo”. Não somos e jamais seremos obra terminada, pois quando se termina, quando se acha que já achamos algo, estamos no início da própria fossilização. Clarice é aberta, escreve convivendo com dúvidas, incertezas e mistérios, como queria Keats definindo Shakespeare a respeito da “capacidade negativa” de um homem. Devemos negar, esquecer para que o novo se crie, caso contrário, estamos sempre repetindo numa atitude abortiva da capacidade de pensar.
Pois bem, e os temas de suas pinturas? Vamos lá: “Cérebro adormecido”, “Eu te pergunto por quê?”, “Perdida na vaguidão”, “Tentativa de ser alegre”, “Medo”, “Luta sangrenta pela paz”, “Escuridão e luz: centro da vida”, “Raiva e reindifição ”, “Pássaro da liberdade”, “Caos, metamorfose, sem sentido” e “Ao amanhecer”. Pinturas feitas no ano de 1975, para citar algumas, mas para frisar as questões que, sem dúvida, perpassam seus quadros e nos remetem aos seus textos.
É impossível ler esse livro de Carlos Mendes de Sousa sem voltar aos textos de Clarice, ainda que a angústia aumente e arrebate a um estado de estranhamento e felicidade instantânea. Em “Água Viva”, um monólogo criativo de Clarice, encontramos fragmentos incômodos, mas ricos de reflexão: “Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e perdidos.” ... Isto não é história porque não conheço história assim, mas só sei ir dizendo e fazendo: é história de instantes que fogem como os trilhos fugitivos que se veem da janela do trem.”... “Tenho que pagar o preço. O preço de quem tem um passado que só se renova com paixão no estranho presente. Quando penso no que vivi me parece que fui deixando meus corpos pelo caminho.”... Eis que de repente vejo que não sei nada. O gume de minha faca está ficando cego? Parece-me que o mais provável é que não entendo porque o que vejo agora é difícil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim e que ainda não tem pensamentos correspondentes, e muito menos ainda palavra que a signifique. É mais uma sensação atrás do pensamento”. Carlos Mendes afirma em seu livro: “Não se tratará propriamente de pretender ler a obra a partir das pinturas, mas lê-las com as pinturas”.
Pois bem, caro leitor, o livro sobre as pinturas de Clarice e suas obras é um convite à reflexão nesse nosso mundo de consumo, de tecnocracia e de incapacidade de ser humilde e civilizado. Convivemos com governantes e políticos que usam seu poder para transformar em crenças, facções fundamentalistas, atitudes de onisciência e arrogância, minimizando a condição humana traduzida com respeito, sofrimento e sabedoria nas obras de Clarice. “Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama”. Estamos cheios de pessoas que pensam que a onisciência, a onipresença e a onipotência existem. Essa é a lição de Clarice que pintava e sabia que não sabia pintar.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.
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