O Senado paraguaio deve depor hoje o presidente do Paraguai, Fernando Lugo. Apesar da drasticidade, o processo está embasado em prerrogativas constitucionais do Congresso e nem de longe se confunde com um golpe de Estado. É uma situação análoga à que apeou do poder o ex-presidente de Honduras, o corrupto Manoel Zelaya, em 2009. Na época, o Brasil interveio de maneira equivocada, cedendo o espaço de sua embaixada para que o presidente deposto pudesse fazer seu proselitismo pós-golpe e tentasse a volta "pelos braços do povo", manobra que não prosperou.
Eleito pela esquerda, Lugo tentou governar pela direita sem fazer as reformas de que o Paraguai necessitava para consolidar sua jovem democracia. Desde o princípio, negou-se a confrontar as oligarquias corruptas que mandam no país desde os tempos do governo Stroessner. Abduzido pelo inimigo, contava com a adesão do Partido Colorado, seu oposto no campo ideológico, ao qual permitiu manter intactos e ainda fortalecer os esquemas de poder que terminarão por atalhar seu mandato.
Lugo encampou causas de seus adversário históricos porque não conseguiu fazer o que se comprometeu: mudar o Poder Judiciário, as polícias e o Ministério Público. Sem isso, ficou refém da nata da corrupção que move o País desde os tempos imemoriais da ditadura militar. Encastelados em cargos-chaves, corruptos notórios transformam o narcotráfico em mola-mestra da economia paraguaia, tendo como único paralelo o poder dos contrabandistas. Estes, Lugo não quis saber de enfrentar.
Uma das maiores contradições de seu governo foi a tolerância para com torturadores que agiram durante a longa ditadura paraguaia. Foi o caso do comissário Saturnino Antônio Gamarra, promovido por ele apesar das denúncias de que havia participado das sessões de tortura aplicadas a três ex-militantes do Movimento Pátria Livre que foram depois acolhidos no Brasil como refugiados políticos. O assunto foi tratado pelo blog no post Lugo promove torturadores de militantes refugiados no Brasil, de maio de 2010.
Parece inacreditável que um ex-bispo socialista esteja encerrando sua carreira como mandante da execução de 17 pessoas, vítimas do confronto entre a polícia e camponeses do MST local. Mas a crise não se resume apenas a isso. A deposição que deve acontecer hoje é o ponto final da carreira de um personagem cuja biografia começou a se despedaçar quando se descobriu que sua praxis política era tão hipócrita quanto seu voto de castidade. Assim que foi eleito, o bispo Lugo teve que se defrontar com seis processos de investigação de paternidade.
Governantes de países vizinhos tentaram ontem se articular para impedir a ação fulminante do Congresso, que em apenas dois dias abriu e votou um processo de impeachment. A reação internacional foi encampada e liderada pela presidente brasileira Dilma Rousseff, que rapidamente mobilizou outros chefes de estado alinhados com a esquerda latino-americana.
É compreensível que governantes tenham ojeriza de situações como esta e engendrem reações solidárias. Mas seria impensável uma articulação nos moldes do desastre diplomático protagonizado pelo governo Lula, que interveio claramente em assunto afeto à autodeterminação do povo hondurenho quando da deposição de Zelaya.
Ainda estão frescas na memória dos nossos vizinhos as lembranças de três intervenções recentes do governo brasileiro em episódios agudos de crise institucional no Paraguai: o acolhimento do ex-ditador Alfredo Strossner, que terminou seus dias isolado em uma mansão do Lago Norte, em Brasília; o asilo dado ao presidente deposto Raul Cubas em 1999, deposto sob a acusação de encomendar o assassinato de seu vice-presidente Luis Maria Argaña; e o refúgio concedido ao general golpista Lino Oviedo.
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