sábado, 7 de junho de 2014

Não atendo emergência - RUTH AQUINO - ÉPOCA


A morte do fotógrafo Marigo na frente de um hospital em greve é uma história do "padrão Brasil"

RUTH DE AQUINO
06/06/2014 21h24 - Atualizado em 06/06/2014 21h28


É possível que se conte nos dedos de uma mão o número de países em que um paciente morre do coração em frente a um Instituto Nacional de Cardiologia (INC), sem receber socorro de nenhum médico ou enfermeiro do hospital. O INC está em greve, como muita gente nesta fase de amistosos pré-Copa das Copas.
A omissão de atendimento imediato a Luiz Cláudio Marigo, de 63 anos, é falta para cartão vermelho. Marigo, fotógrafo premiado de Natureza, embarcou num ônibus, no Rio de Janeiro. Começou a passar mal pouco depois. O motorista, Amarildo Gomes, desviou seu percurso por estar perto do INC, em Laranjeiras, único hospital público no Rio que faz transplantes de coração em crianças e adultos, referência em ensino e pesquisa.
O ônibus foi estacionado em frente ao hospital, e Marigo, deitado no chão do veículo, com dores no peito. Amarildo e passageiros estavam solidários com o drama do anônimo. Ele não levava documentos, apenas uma bolsa com chaves, moedas e R$ 42. Não sabiam que era um homem das florestas. Naquele momento, o povo do ônibus acreditava que poderia salvá-lo. Qualquer um sabe que os primeiros minutos após um infarto são cruciais.
Começava ali uma história padrão Brasil. Seguranças do hospital disseram que o INC não atende emergência e que seria melhor chamar os bombeiros ou uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Assim agiu o motorista Amarildo, mas a contragosto: “Achei um absurdo, um pouco-caso com a vida humana”. Quando uma ambulância chegou ao hospital levando outro paciente, o paramédico prestou os primeiros socorros. Mais tarde, chegaram os bombeiros.
Mesmo em greve, havia no hospital um leito, alguns médicos e plantonistas na Unidade Coronariana. O sargento dos bombeiros Alves afirmou: “Se viesse um médico na hora, já era muita coisa. Isso aí é omissão de socorro”.
Dá dor no coração. Nem falo do Juramento de Hipócrates. Nele, um médico formando jura, por todos os deuses e deusas, aliviar o sofrimento humano. Quantas vezes ouvimos num avião o comandante pedir ajuda: “Se houver um médico neste voo, favor atender um passageiro que está passando mal”. Já pensou o médico se omitir por achar que ganha pouco, ou que não é função dele trabalhar de graça? Já pensou ele dizer: “Não atendo emergência”?
O hospital tem sua versão. A nota do INC diz, e é verdade, que o hospital não tem emergência aberta ao público geral. E daí? A direção diz que o INC nunca fez primeiro atendimento e que sua especialidade são procedimentos de alta complexidade. Sim, e quando se trata de um caso de vida ou morte na frente do hospital?
A diretora do INC, Cynthia Magalhães, afirmou: “Não houve omissão de socorro e não houve erro (...). Nenhum membro da equipe médica foi notificado de que havia um paciente passando mal dentro de um ônibus (...), e sim um paciente passando mal na rua”. Então, médico não sai para socorrer na rua? Cynthia disse que os seguranças do hospital não entenderam a gravidade do caso. Como poderiam? Quem entende de gravidade é médico.
“O que houve foi uma omissão de socorro generalizada, uma falta de integração na rede”, disse Lúcia Pádua, diretora do Sindsprev, ao elogiar o INC como uma “ilha de excelência”. O que não pode, afirmou Lúcia, é “o paciente chegar a um hospital e ser recepcionado por seguranças”. Apela-se a quem? Ao Bom-Senso Medicina Clube?
Então, quem faz a triagem na porta de hospitais, públicos e privados, não são profissionais de Saúde. São seguranças, vigilantes. Na  semana passada, um vídeo na recepção de um hospital mostrou seguranças arrastando pelo chão, para fora do hospital, um paciente em cadeira de rodas. Acompanhantes levaram socos e gravatas. O paciente estava sem documentos e “agressivo”, disse Geraldo Medeiros, diretor do Hospital de Trauma de Campina Grande, na Paraíba. Entendi. O hospital deixa os pacientes com trauma.
A morte do fotógrafo Luiz Cláudio Marigo, que trabalhou diversas vezes para ÉPOCA, expõe nossa vulnerabilidade à humilhação, à frieza e à incompetência das recepções hospitalares. Entre no site http://www.lcmarigo.com.br e perceba como era talentoso: “A conservação da biodiversidade depende do conhecimento e do amor. O papel dos fotógrafos de Natureza é despertar a consciência do homem para a incrível riqueza da vida na Terra, sua beleza e valor espiritual. (…) Espero que meu trabalho transmita a mesma alegria e emoção que sinto nos ambientes selvagens e que minhas fotografias não se transformem apenas em mais um documento do passado”.
Se depender do filho dele, Vítor Marigo, que processa União e hospital, sua vontade será respeitada: “Queremos conseguir uma indenização para abrir uma fundação. O importante é manter viva a obra de meu pai”. Porque “selvagem” é a vida aqui fora.

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