sábado, 7 de junho de 2014

A PEC do Trabalho Escravo é uma emenda liberal?



Você deve ter ouvido falar que o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC),promulgada hoje, 05/06, no Congresso Nacional, chamada de “PEC do trabalho escravo”, cujo objetivo é permitir o confisco de propriedades em que haja exploração de trabalho escravo.
Após a alteração, o art. 243 da Constituição passa a ter a seguinte redação:
“Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas* ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º;”
Em texto para o Centro por uma Sociedade sem Estado, esclareci qual seria a posição de um libertário em relação à PEC. Podemos resumi-la assim: a emenda traz um princípio genuinamente liberal, mas existem receios legítimos em relação à sua aplicação.
Primeiro, uma pessoa que escravize outras em suas terras pode ser justamente expropriada.
Para um libertário, uma terra sem dono é de quem a ocupou e trabalhou nela. Se você for obrigado a continuar a trabalhar em uma terra que já utilizava ou se for levado a um novo local e obrigado a trabalhar à força, o terreno é legitimamente seu, não do escravizador.
Mesmo que o escravocrata fosse legítimo proprietário anteriormente, ao violar seus direitos e lhe obrigar a usar a terra, os direitos dele à terra perdem a legitimidade. Portanto, a expropriação da terra do escravocrata em favor dos escravizados é uma medida justa.
Quanto aos receios, um dos problemas está na definição legal brasileira para trabalho escravo.
O Código Penal criminaliza a “redução a condição análoga à de escravo”, que abarca: 1) sujeição a trabalho forçado; 2) servidão por dívidas (limitação da locomoção em razão de dívida); 3) jornada exaustiva; 4) condições degradantes de trabalho.
Por isso, quando se ouve falar em “trabalho escravo no Brasil”, não estamos necessariamente falando de trabalho forçado. Este só ocorre nas duas primeiras hipóteses, não nas duas últimas.
Isso tem causado confusão inclusive. Talvez você tenha visto no facebook alguma matéria sobre “C&A é condenada por trabalho escravo” no mês passado. O caso não tinha nada a ver com trabalho forçado, mas ainda assim a imprensa se equivocou e acreditava que a condenação da empresa em uma ação trabalhista tivesse ocorrido pela ocorrência de trabalho escravo. O equívoco foi esclarecido, como escrito no blog do Sakamoto:
“Constatamos, por fim, que nunca houve realmente condenação ou mesmo resgate de trabalhadores. Segundo a Justiça, o caso envolveu jornada excessiva, não-pagamento de horas extras, descumprimento do descanso semanal remunerado e do intervalo para refeições. Graves violações, mas não trabalho escravo contemporâneo.”
A confusão teria se dado porque o caso da C&A envolvia “excesso de jornada”, mas não “jornada exaustiva”. A primeira não configura o crime de “redução a condição análoga a de escravo”, mas a segunda sim.
Então, veja que o princípio da expropriação é claramente justo quando se diz respeito às hipóteses de trabalho forçado, mas não necessariamente quanto às hipóteses de “trabalho não forçado” que, como vimos, nossa legislação considera como “redução a condição análoga a de escravo”.
A vagueza dos conceitos de “jornada exaustiva” e de “condições degradantes de trabalho” leva a que seu significado seja aquele determinado pelo governo federal, através do Ministério do Trabalho.
É verdade que há um controle judicial posterior à esfera administrativa, e que, portanto, o judiciário não precisaria seguir a regulamentação do Ministério do Trabalho ao julgar esse tipo de crime. Mas o fato é que as autuações realizadas pela fiscalização deste Ministério seguem essa regulamentação administrativa, e a tendência natural é que o poder judiciário continue acatando-a como um critério “objetivo” para interpretar a lei penal.
Dessa forma, se fosse utilizada a lei penal já existente para interpretar a nova redação da Constituição, o descumprimento de determinados regulamentos trabalhistas estatais ensejaria a qualificação de “redução a condição análoga a de escravo” e possibilitaria a expropriação, independentemente de uma investigação sobre os costumes locais, a voluntariedade dos acordos com os trabalhadores ou peculiaridades dos casos.
Essa insegurança na interpretação do conceito motivou o acréscimo do “na forma da lei” no texto aprovado, de modo que a norma dependerá de regulamentação posterior sobre o que é “explorar trabalho escravo”. Então, quanto a este ponto, teremos de aguardar a lei que definirá o conceito especificamente para fins de expropriação.
Mas existe outro desvio importante do princípio libertário que delineamos acima. No texto constitucional, a expropriação da terra não será uma medida de reparação pela escravidão sofrida, mas sim uma política de redistribuição de terras pelo interesse social em promover reforma agrária ou habitações populares. 
Mesmo se houver prioridade ao assentamento das pessoas que foram anteriormente escravizadas, a principal repercussão prática disso seria na capacidade das vítimas de disporem sobre essas terras, uma vez que os assentamentos para reforma agrária ou habitações populares são organizados e regulamentados pelo governo.
Portanto, como destaquei em meu texto para o C4SS, a medida pode servir para reforçar o controle obsessivo do Estado brasileiro sobre o acesso à terra dos mais pobres. Como escrevi em meu texto“Quem reintegra os pobres?”, um dos principais mecanismos governamentais de exclusão das pessoas mais pobres é o controle da terra. O Estado brasileiro combina uma defesa intransigente da propriedade privada de grandes corporações com uma persistente desproteção da posse das pessoas mais pobres e a ânsia em controlar e regular o acesso destas à terra.
Além disso, é o próprio controle do estado sobre o acesso à terra que tem criado pessoas que precisam da reforma agrária ou de habitações populares. A primeira coisa que o estado (português à época) fez ao ocupar o Brasil foi dividi-lo em capitanias hereditárias e criar o latifúndio. A grilagem só existiu na Amazônia devido à vulnerabilidade dos sistemas de registro imobiliário no campo, em grande medida voltados para “títulos artificiais de propriedades” (isto é, não apropriadas originalmente por uso e ocupação), o que, no auge, possibilitou que “Carlos Medeiros, uma pessoa que nunca existiu, tivesse em seu nome 1,5% do território nacional, o equivalente à soma dos territórios de Portugal e Bélgica.
Enquanto isso, a falta de regularização da propriedade dos mais pobres, no campo ou na cidade – historicamente, de indígenas e quilombolas – contribuiu para manter esses grupos na pobreza e vulnerabilidade social.
Portanto, enquanto seja genuinamente libertário que as vítimas de trabalho escravo tenham direito pleno às terras nas quais foram escravizados, sem prejuízo de indenizações específicas pelos danos sofridos, a PEC do trabalho escravo enfraqueceu esse princípio, ao estabelecer que a expropriação será uma política de redistribuição de terras sob controle do Estado, ao invés de reparação das vítimas. Portanto, de um lado podemos ficar contentes pela incorporação de um princípio libertário, mas, de outro, devemos ficar alertas para saber como será essa aplicação.
*É curioso que desde 1988 até a aprovação desta PEC, só houvesse uma única hipótese de expropriação de terra sem indenização no Brasil: o cultivo de psicotrópicos. Como escrevi em meu texto para o C4SS: “O governo quis desestimular a produção interna (protegendo assim o cartel de traficantes que controlam a importação de várias drogas ilícitas), para sustentar seu combate falido às drogas, que, além de ter tornado várias cidades do país campeãs mundiais em homicídio, ainda mata crianças deficientes por negar acesso até mesmo ao uso medicinal da maconha. Sua desobediência civil, com a produção de psicotrópicos que podem salvar crianças com doenças raras, pode fazer com que sua terra seja expropriada pelo governo sem indenização.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário