quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Túnel do Tempo: A terrível pergunta do lateral Cabral, por Davi Coimbra


26 de setembro de 2012
Era difícil não olhar para a mulher do Cabral. Morena jambo, voluptuosa, com uma malícia esverdeada reluzindo no olhar.
Milena.
Quem a via, dizia: Milena peca. Ou pecará. Tinha todo o jeito de quem podia pecar, e talvez até pecasse, só que Cabral jamais se afastava dela. Nem quando ia jogar, que Cabral era profissional da várzea. Profissional mesmo, 400 reais por jogo, o maior salário amador da cidade.
Mas quem pagava não se arrependia: Cabral garantia segurança absoluta na lateral-direita, Cabral dizia-se, e era, à prova de ponta. Ninguém sabia como, porque era lento, era tosco, não dava em bola. Só era forte, só isso, mas pontas serelepes passam por laterais fortes, até humilham laterais fortes. Menos Cabral.Cabral nunca havia sido driblado por atacante algum.
Assim transcorreu sua carreira varziana, no entanto bem remunerada, até que um dia, o Cabral já veterano, meio gordo, mais lento do que jamais fora, coube ao time dele, o Canarinho, enfrentar o nosso, o bravo Huracán. Um clássico iapiano. O Canarinho sempre ganhava.
Daquela vez, contudo, o Jorge Barnabé jogava na ponta do Huracán. Chamavam-no Barnabé pela semelhança com um obscuro detetive de TV, Barnaby Jones. Nunca ninguém assistiu a um único capítulo de Barnaby Jones, no Brasil, exceto o goleiro Languiça, que foi quem grudou o apelido no Barnabé.
Barnabé era magro, alto e, o ponto importante, muito rápido. Sempre vencia os laterais, qualquer lateral. Por isso, o Huracán apostava na velocidade do Barnabé para obter sua primeira vitória sobre o Canarinho. Não seria um veterano, sobejamente conhecido por sua lentidão, que pararia o Barnabé. Ah, não.
Assim, todas as estratégias do Huracán passavam pela rapidez do Barnabé e, durante toda a semana, ele prometeu que ganharia o jogo. Atropelaria o Cabral e ganharia o jogo!
No domingo de manhã, lá estavam todos no Alim Pedro. O Barnabé de um lado, saltitando, explodindo de energia; o Cabral de outro, forte, ameaçador, mas de movimentos lerdos como um paquiderme.
No alambrado, agarrada à tela de arame, ela, Milena, sedutora dentro de seu shortinho mínimo. Quando Cabral estava virado para outro canto do estádio, todos olhavam para Milena. Quando ele se voltava, todos disfarçavam.
Era visível a diferença entre o Barnabé e o Cabral, sentíamos nas travas das chuteiras que o Barnabé voaria o jogo inteiro área adentro, sem que Cabral sequer o achasse para fazer falta nele. Estava na mão — o Huracán venceria, enfim.
Mas não foi o que aconteceu.
Não foi. Antes do jogo, o Cabral aproximou-se mansamente do Barnabé e disse algo para ele. Falou baixinho, ninguém ouviu, mas alguns flagraram o constrangimento do Barnabé. O Barnabé gaguejava:
— Eu? N-nada... Ju-juro... Na-nada...
O Cabral, então, levantou uma sobrancelha e indagou:
— Nada?...
E o Barnabé ficou ainda mais embaraçado. Enrubesceu, uma gota de suor rolou de sua testa e umedeceu a grama.
— Não! — protestou ele. — Não é nada disso! Claro que acho, sim, acho, mas não é nada disso que tu... que você... que o senhor... eu na verdade... eu... eu... com todo o respeito... tenho muito respeito... eu...
Ao que, o Cabral interrompeu.
— Sei — disse somente, e deu-lhe as costas, voltando para sua metade de campo.
Depois daquele diálogo insólito, o Barnabé teve a pior atuação da sua vida. Não foi uma só vez à linha de fundo, não passou nem perto do Cabral, a lateral direita do Canarinho foi um terreno intocado durante 90 minutos, e o Huracán perdeu de novo. Terminado o jogo, claro, fomos no Barnabé. Queríamos saber o que o Cabral dissera para ele.
— Não disse nada — respondeu o Barnabé. — Ele só fez uma pergunta.
— Uma pergunta? Que pergunta???
E o Barnabé contou que o Cabral olhou fixamente em seus olhos, um olhar duro de pedra, e perguntou:
— O que tu achas da minha mulher?
E o Barnabé olhou para Milena pendurada no alambrado, Milena deleitável e robusta, Milena de shortinho, Milena para quem era impossível não olhar e de quem era impensável não pensar nada, e o Barnabé queria muito responder, queria muito dizer o que sentia, queria gritar:
— Ela peca! Ela tem que pecar!
Mas ao mesmo tempo não podia, e sofreu tanto por aquilo tudo, tanto, tanto, que soube, de pronto, que não jogaria nada, que estava irremediavelmente perturbado, que não conseguiria se concentrar na bola, que a tarde estava acabada para ele. Foi o que se deu, e o Cabral continuou imbatível, continuou à prova de ponta.
Continuou merecendo o maior salário amador da cidade, 400 reais por jogo.

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