PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA
CARLOS VIEIRA
Aniversário de 110 anos do poeta maior, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Imagino nesse momento, no Paraíso, Drummond, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Antônio Carlos Jobim, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes. Todos em companhia também do meu querido Jorge Luís Borges, que antes de morrer sonhou que levaria sua biblioteca para os céus, pois teria de ler e reler os livros de sua imensa biblioteca.
Quem sabe nossos “cânones” estejam trocando ideias sobre temas existenciais, técnica de forma da escrita, sorrindo e chorando as alegrias e tristezas que sempre foram temas da existência humana. Será que algum parceiro, recém-chegado nas alturas deu notícias do aqui embaixo? Falcatruas, corrupção, obras superfaturadas para a Copa do Mundo, o escândalo de Cachoeira e seus colegas das contravenções. Imagino que eles devem estar deprimidos depois de saber que a Academia Brasileira de Letras deu a Ronaldinho Gaúcho a medalha de Machado de Assis. Penso que ao menos um fato inédito, o Rio de Janeiro tombado como Patrimônio da Humanidade, encheria de contentamento aqueles que cantaram em prosa, verso, canção e música, a Cidade Maravilhosa.
Bom, quero me deter nas comemorações dos 110 anos de Drummond. A 10ª Festa Literária Internacional de Parati, em particular, e a Editora COSACNAIFY dedicaram uma homenagem justíssima ao poeta. Nesse clima, foram lançados dois belos livros, lindamente impressos pela editora: Carlos Drummond de Andrade – Poesia 1920-62 – Edição Crítica; e outro, inédito: Os 25 Poemas da Tristeza Alegria, Carlos Drummond de Andrade.
O primeiro, suas poesias do período de 1920 a 1960, reunindo dez livros do poeta: Algumas Poesias, Brejo das Almas, Sentimento do Mundo, José, A Rosa do Povo, Novos Poemas, Claro Enigma, Fazendeiro do Ar, A Vida Passada a Limpo e Lição de Coisas. Essa edição é resultado de anos de pesquisa de uma equipe coordenada por Júlio Castañon Guimarães na Fundação Casa de Rui Barbosa.
O segundo, Os 25 Poemas de Tristeza Alegria, fac-símile de um exemplar único, restitui à cultura brasileira a primeira fase da poesia de Carlos Drummond, edição com apresentação de Antônio Carlos Secchin. Aconselho aos leitores adquirirem essas duas obras que trazem de volta a beleza, profundidade, criatividade e a genialidade do brasileiro das Minas Gerais.
Escolho hoje, um dos poemas do livro, Sentimento do Mundo, publicado em 1940, com tiragem de 150 exemplares – Os Ombros Suportam o Mundo.
“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandeceram enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
E ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
Provam apenas que a vida prossegue
E nem todos se libertaram ainda.
A vida apenas, sem mistificação.”
J.S.Bach, após ter tocado de improviso uma de suas obras maiores, A Oferenda Musical, tendo escrito a partitura só depois, ao ser perguntado como a compôs, diz a lenda que ele teria dito “eu não componho, são os Anjos que cantam para mim, sou apenas um instrumento de Deus.”
Drummond, em entrevista dada a Bella Josef, originalmente publicada no Jornal O Globo em 1982 (Coleção Encontros, organizada por Larissa Pinho Alves Ribeiro), disse “Parece que foi Paul Valéry quem disse que o primeiro verso é ditado pelos deuses e os demais saem da cabeça da gente”. Na mesma edição de Encontros, entrevista a Zuenir Ventura, 1980, publicada originalmente na revista Veja em 19 de novembro de 1980, o nosso poeta afirma “Ao escrever poesia, o que eu procurei fazer foi resolver os problemas internos meus, problemas de ascendência, problemas genéticos, problemas de natureza psicológica, de inadaptação ao mundo, como ele existia. Foi a minha autoterapia.”
O poema acima transcrito, prezado leitor, faz-me pensar num Drummond mais do que atual, um homem genial, como todo artista que pré-concebe o que as pessoas comuns não se dão conta – os fatos atuais e a “antecipação do futuro”. O nosso homem de Itabira, Minas Gerais, já sentia, descrevia e prenunciava o mundo atual. Seu poema canta em versos a falta de Fé, a anorexia de amor. “Os olhos não choram... e o coração está seco”. Vivemos num mundo de um egocentrismo patológico, de uma frieza afetiva, e por que não dizer, “uma fobia de amar”. A secura do coração revela uma sociedade enfartada, na qual as artérias estão obstruídas em seu fluxo de afeto. Chorar, sentir, perdem espaço para um “homem executivo” preocupado com o prazer pelo prazer e o prazer pelo ter e acumular bens materiais. Concordo com o nosso poeta: esses olhos não choram mais e “as mãos tecem apenas o rude trabalho”.
A solidão se instala. “Ficaste sozinho”. Eu diria, instalou-se desse modo, a sociedade depressiva, vazia, alienada e distanciada da noção de Fé, Família, Ética e Solidariedade Humana. “Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo.”... “Chegou o tempo em que não adianta morrer./Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação.” A tecnocracia criou uma ordem burocrática e especializada no crescimento das comodidades materiais, e não na qualidade de vida, na profilaxia do desastre ecológico e nem no resgate da vida espiritual, afetiva, cultural, humanizada.
Diz o poeta em outra entrevista, ainda na Coleção Encontros “Sou inteiramente otimista, sem deixar de ser pessimista com relação à vida”.
Nosso poeta, Carlos Drummond de Andrade é atual!
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.
Quem sabe nossos “cânones” estejam trocando ideias sobre temas existenciais, técnica de forma da escrita, sorrindo e chorando as alegrias e tristezas que sempre foram temas da existência humana. Será que algum parceiro, recém-chegado nas alturas deu notícias do aqui embaixo? Falcatruas, corrupção, obras superfaturadas para a Copa do Mundo, o escândalo de Cachoeira e seus colegas das contravenções. Imagino que eles devem estar deprimidos depois de saber que a Academia Brasileira de Letras deu a Ronaldinho Gaúcho a medalha de Machado de Assis. Penso que ao menos um fato inédito, o Rio de Janeiro tombado como Patrimônio da Humanidade, encheria de contentamento aqueles que cantaram em prosa, verso, canção e música, a Cidade Maravilhosa.
Bom, quero me deter nas comemorações dos 110 anos de Drummond. A 10ª Festa Literária Internacional de Parati, em particular, e a Editora COSACNAIFY dedicaram uma homenagem justíssima ao poeta. Nesse clima, foram lançados dois belos livros, lindamente impressos pela editora: Carlos Drummond de Andrade – Poesia 1920-62 – Edição Crítica; e outro, inédito: Os 25 Poemas da Tristeza Alegria, Carlos Drummond de Andrade.
O primeiro, suas poesias do período de 1920 a 1960, reunindo dez livros do poeta: Algumas Poesias, Brejo das Almas, Sentimento do Mundo, José, A Rosa do Povo, Novos Poemas, Claro Enigma, Fazendeiro do Ar, A Vida Passada a Limpo e Lição de Coisas. Essa edição é resultado de anos de pesquisa de uma equipe coordenada por Júlio Castañon Guimarães na Fundação Casa de Rui Barbosa.
O segundo, Os 25 Poemas de Tristeza Alegria, fac-símile de um exemplar único, restitui à cultura brasileira a primeira fase da poesia de Carlos Drummond, edição com apresentação de Antônio Carlos Secchin. Aconselho aos leitores adquirirem essas duas obras que trazem de volta a beleza, profundidade, criatividade e a genialidade do brasileiro das Minas Gerais.
Escolho hoje, um dos poemas do livro, Sentimento do Mundo, publicado em 1940, com tiragem de 150 exemplares – Os Ombros Suportam o Mundo.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandeceram enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Teus ombros suportam o mundo
E ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
Provam apenas que a vida prossegue
E nem todos se libertaram ainda.
Drummond, em entrevista dada a Bella Josef, originalmente publicada no Jornal O Globo em 1982 (Coleção Encontros, organizada por Larissa Pinho Alves Ribeiro), disse “Parece que foi Paul Valéry quem disse que o primeiro verso é ditado pelos deuses e os demais saem da cabeça da gente”. Na mesma edição de Encontros, entrevista a Zuenir Ventura, 1980, publicada originalmente na revista Veja em 19 de novembro de 1980, o nosso poeta afirma “Ao escrever poesia, o que eu procurei fazer foi resolver os problemas internos meus, problemas de ascendência, problemas genéticos, problemas de natureza psicológica, de inadaptação ao mundo, como ele existia. Foi a minha autoterapia.”
O poema acima transcrito, prezado leitor, faz-me pensar num Drummond mais do que atual, um homem genial, como todo artista que pré-concebe o que as pessoas comuns não se dão conta – os fatos atuais e a “antecipação do futuro”. O nosso homem de Itabira, Minas Gerais, já sentia, descrevia e prenunciava o mundo atual. Seu poema canta em versos a falta de Fé, a anorexia de amor. “Os olhos não choram... e o coração está seco”. Vivemos num mundo de um egocentrismo patológico, de uma frieza afetiva, e por que não dizer, “uma fobia de amar”. A secura do coração revela uma sociedade enfartada, na qual as artérias estão obstruídas em seu fluxo de afeto. Chorar, sentir, perdem espaço para um “homem executivo” preocupado com o prazer pelo prazer e o prazer pelo ter e acumular bens materiais. Concordo com o nosso poeta: esses olhos não choram mais e “as mãos tecem apenas o rude trabalho”.
A solidão se instala. “Ficaste sozinho”. Eu diria, instalou-se desse modo, a sociedade depressiva, vazia, alienada e distanciada da noção de Fé, Família, Ética e Solidariedade Humana. “Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo.”... “Chegou o tempo em que não adianta morrer./Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação.” A tecnocracia criou uma ordem burocrática e especializada no crescimento das comodidades materiais, e não na qualidade de vida, na profilaxia do desastre ecológico e nem no resgate da vida espiritual, afetiva, cultural, humanizada.
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