quinta-feira, 4 de setembro de 2014

POEMA DA NOITE A coisa estranha, por Álvaro de Campos


A coisa estranha e muda em todo o corpo, 
Que está ali, ebúrnea, no caixão, 
O corpo humano que não é corpo humano 
Que ali se cala em todo o ambiente; 
O cais deserto que ali aguarda o incógnito 
O assombro álgido ali entreabrindo 
A porta suprema e invisível; 
O nexo incompreensível 
Entre a energia e a vida, 
Ali janela para a noite infinita... 
Ele — o cadáver do outro, 
Evoca-me do futuro 
Eu próprio assim, eu mesmo assim...
E embandeiro em arco a negro as minhas esperanças 
Minha fé cambaleia como uma paisagem de bêbedo, 
Meus projectos tocam um muro infinito até infinito.

Álvaro de Campos nasceu em Tavira, Algarve, Portugal, e depois se mudou para Glasgow, Escócia, onde foi estudar engenharia. Primeiro mecânica, depois naval. "Quase se conclui do que diz Campos, de que, o poeta vulgar sente espontâneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim" afirmou Ricardo Reis em um de seus apontamentos. Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa.

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