domingo, 3 de agosto de 2014

Cartas de Buenos Aires: Dois defaults e um funeral


Gabriela Antunes
Esta semana, nós jornalistas que trabalhamos na Argentina acumulamos poucas horas de sono.
Nos momentos de espera de um alô do Governo quanto ao possível calote argentino, passamos debruçados sobre os dicionários de economês e discutimos incansavelmente, entre os colegas, a etimologia de uma palavrinha gringa: d-e-f-a-u-l-t.
A Argentina, depois de treze anos, dava novamente um calote?
Dizia o filósofo francês Jean Baudrillard, cujas teorias inspiraram o filme “Matrix”, que o que a humanidade vive não é a realidade.
Em seu tratado filosófico “Simulacres et Simulation”, Baudrillard sustenta que sociedade atual substituiu toda a realidade por signos e símbolos, tornando o que conhecemos como experiência humana, apenas uma simulação da realidade.
Simulação ou Simulacro?
O Governo argentino sustenta, ao não obter acordo com os fundos abutres, que o que acontece com a Argentina não é um default.
Default é uma palavra considerada nefasta para qualquer argentino que tinha idade suficiente em 2001 para entender o que acontecia à nação, quando, sem muitas opções, teve que dar o maior calote financeiro internacional da história moderna.
As conseqüências foram muito além da discussão etimológica da palavra “default”: milhares de argentinos ficaram desempregados, tiveram as poupanças confiscadas, houve suicídios, infartos.
Por isso, Governo, opositores e imprensa entraram em uma discussão ferrenha sobre a real situação econômica do país. E a “verdade”, se há alguma (Baudrillard discordaria), é que ninguém sabe.
Sabe-se que a Argentina, um país que começou o século XX como um dos mais ricos e promissores do planeta, deve fechar a primeira quinzena de século XXI sem um consenso sobre o fato de estar ou não na bancarrota.
O clima na imprensa opositora é sempre apocalíptico e na governista “omundonãoacaboufeelings”.
De um lado, os opositores do Governo apontam o dedo para o Governo atual, que não contraiu a dívida, e enchem a boca com a palavra “default”; do outro, o Governo usa todo seu latim para explicar com metáforas elegantes que a Argentina vai muito bem, obrigada. 
No meio deste filme “Matrix”, onde ninguém sabe se toma a pílula vermelha ou azul, morre Julio Grondona, o todo poderoso do futebol argentino, há 35 anos polemizando e controlando o esporte no país. Esta pátria de chuteiras perdeu mais um de seus símbolos. Um país que, como nós, confunde futebol com “vida real”, perdeu seu controverso “papá”.
Entre o default da semana (era mesmo?), o fantasma do default passado e o funeral do Grondona, tivemos dois defaults e um funeral. Uma semana crítica, ou apenas mais uma semana por aqui?

 

Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín.Escreve aqui todos os sábados.

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