domingo, 5 de janeiro de 2014

Cartas de Buenos Aires: Noites de Cabíria, por Gabriela Antunes


“Eu te sugiro um fernet, te faria bem.” ( Noites de Cabíria)
Se fizesse no Brasil o calor descomunal que está fazendo em Buenos Aires, deixaria as cervejarias tão colapsadas quanto o sistema elétrico da cidade. Não haveria oferta que desse conta da demanda.
Não que o argentino não tome cerveja, pois a Quilmes está aí para mostrar que os “hermanos” adoram a loira. Mas é surpresa para muitos brasileiros quando descobrem que não é nem o vinho nem a cerveja o combustível das noites portenhas.
O primeiro gole costuma ser seguido de uma careta. Amargo, denso e licoroso, o fernetnão lembra em nada a refrescante caipirinha, não tem apelo para as papilas gustativas brasileiras e ainda pode trazer a nostálgica lembrança do velho Biotônico Fontoura, aquele mesmo que, na sua infância, sua mãe insistia em escorregar goela abaixo com intrusas colheradas.
Circulam várias versões diferentes sobre as origens dessa bebida que, a bem da verdade, ninguém sabe exatamente do que é feita. Açafrão (dizem que 75% da produção mundial vai para a fabricação da bebida), cardamono, camomila e outras 24 ervas fazem parte da fórmula que, contam, chegou a ser usada até como remédio para cólera. Reza a lenda que nasceu na Itália e foram os imigrantes que a trouxeram para cá, como remédio para cólicas e dores gastroestomacais.


Mas por aqui o pessoal não é tão purista como os italianos, que servem a bebida como aperitivo, purinha (um coice no fundo da garganta!). O fernet com coca-cola, ícone nacional, musa inspiradora de várias bandas de rock, é mesmo o companheiro de todas as horas e vem, ao contrário da cerveja, bem gelado.
Imortalizado no cinema pelo filme de Federico Fellini “Noites de Cabíria”, graças à preferência de um dos personagens pela bebida, o fernet continua um aperitivo na Itália, mas misturá-lo com coca-cola por lá é considerado uma heresia.
O golfista argentino Ángel Cabrera conta que uma vez foi expulso de um restaurante na Itália porque ao dono do lugar lhe pareceu extremamente vulgar misturar coca-cola com uma bebida tão fina como o fernet.
Mas por aqui ela é mesmo uma bebida democrática, caiu nas graças dos jovens e do gosto popular. Nos estádios de futebol, como está proibido, as garrafas chegam a ser enterradas no campo antes dos jogos para burlar a fiscalização.
Boa parte do consumo se concentra em Buenos Aires e na província de Córdoba, onde tem até fábrica artesanal.
A falta de “frescura” com o fernet na Argentina faz da bebida uma paixão nacional. Apenas um aviso: não beba a coca-cola destinada ao fernet nos churrascos, pois aí dá briga.

Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín. Escreve aqui todos os sábados.

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