quarta-feira, 8 de outubro de 2014

TERROR NUM SHTETL GAÚCHO: QUATRO IRMÃOS (1924) - UMA HISTÓRIA OCULTA DA COLUNA PRESTES


As revoluções têm uma imagem complacente de si. Raramente há a autocrítica de sua ação concreta. Conforme se consolida sua história, apagam-se as violências ou injustiças cometidas por elas, restando apenas a sua motivação altruísta. A Coluna Prestes (1924-7) é um destes casos, pois a historiografia dominante se rendeu ao ineditismo militar (guerra de movimentos), o caráter heróico e a busca utópica da justiça social por seus líderes. Porém, pouco se escreveu da brutalidade dos revolucionários no trato dispensado à população civil, que por razões práticas teve de lhe prover o sustento, sob a ameaça das armas.
Este artigo é na contramão desta história consagrada, ele mostra a Coluna Prestes no início, atacando o povoado gaúcho de Quatro Irmãos, com o único propósito de saquear a sua população para sustentar o grupo revolucionário que se formava. Foi escrito com base numa cópia do inquérito policial que o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro (AHJB) possui, junto à documentação que compõe o fundo Jewish Colonization Association (ICA). Entrevistei, também, alguns descendentes de famílias atingidas por essa desordem pretensamente revolucionária. Pronto o artigo, ele foi oferecido a três revistas de História onde já publiquei, porém foi recusado por razões singelas, mas que podem ser interpretadas nas entrelinhas como “ainda não se publicam na historiografia acadêmica os desvios de um ícone esquerdista”.

A COLUNA PRESTES

O presidente Arthur Bernardes (1875-1955) já assumiu o governo em estado de sítio. A insatisfação política dos seus opositores tomou forma revolucionária. Em S. Paulo grupos militares levantaram-se contra o governo, mas foram batidos pelas tropas legalistas e então fugiram para o sudoeste do Paraná. No sul o capitão Luís Carlos Prestes (1898-1990), que servia no 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo sublevou sua unidade militar em 28 de outubro de 1924. O gesto funcionou como uma senha para os descontentes começarem a se agrupar para integrar a coluna de insurretos que formou com eles e mais o grupo paulista. Tornou-se conhecida como Coluna Prestes e deslocou-se militarmente 24 mil quilômetros por todo o país, entre 1924 a 1927. Próximo a fronteira com Santa Catarina, um destes bandos de revolucionários caiu sobre a indefesa Quatro Irmãos para tomar cavalos, víveres e dinheiro, supostamente para prover o movimento. Eles chegaram pela estrada de Nonohay. O calendário marcava três de dezembro de 1924.
Eram quarenta ou cinqüenta homens aramados com fuzis e armas brancas, identificados pelo lenço vermelho dos maragatos (oposicionistas) colocados em volta do pescoço, montados em cavalos, todos comandados por um velho trajado de uniforme cáqui amarelo com seis galões no ombro. Soube-se depois que ele era o coronel Favorino Mariano Pinto (1869-1927) e que ao seu lado cavalgavam dois filhos: o capitão Heráclides Pinto, apelidado “Pretinho” e o tenente Apolinário Pinto, vulgo, “Lulu” ou “Pintinho”. O trio era gaúcho e já agia na região há tempos. Revolução para eles era um meio de vida e os seus título militares eram forjados nas sangrentas lutas campeiras. Eram maragatos de formação.
“Maragatos” foi o apelido depreciativo dado pela primeira vez durante a Revolução Farroupilha em 1893 aos opositores de Borges de Medeiros (1864-1961), presidente do Rio Grande do Sul. O nome vinha de um grupo etnocultural de origem espanhola, maragatos, nômades e, ao que parece, descendentes de mouriscos, reputados como ladrões e assassinos. O nome foi assumido como orgulho pelos Federalistas, e perdurou como uma forma de assustar os adversários. Era gente com uma persistente tradição de ferocidade e crueldade. Um dos maragatos históricos, Adão Latorre (1837-1923), teria degolado sozinho numa tarde trezentos prisioneiros no chamado Massacre do Rio Negro (1893). Já o Pretinho de nossa história, dias antes da invasão a colônia, matara num baile ocorrido no povoado chamado Sapo o sanfoneiro que lhe desagradara. Preso, ele foi solto pelo bando que o pai comandava.

O SHTETL

Quatro Irmãos fica num vale entre as serras gaúchas, próximo a Erechim, e na época era uma espécie de shtetl (povoado judeu) europeu transplantado para terras brasileiras. Poucas ruas de terra batida, conhecidas na época como Rua da Guenendel (homenagem a costureira Guilhermina Lechtman, que morava nela), a Rua da Fremeleia (a comerciante Luisa Antebi), a Rua dos Grãfinos e a dos Carrapichos, circundadas por várias propriedades rurais. O povoado fora criado na primeira década do século XX por judeus vindos, em sua maior parte, da Bessarábia (hoje Moldávia e Romênia). Era o fruto de um projeto encabeçado pelo banqueiro alemão barão Maurice de Hirsch (1831-1896), destinado a tirar os judeus da Europa Oriental, livrando-os das perseguições anti-semitas locais, e fixá-los no mundo rural. Muitos deles já tinham experiência agrícola, pois cultivam fumo e girassol nas terras de origem. Para viabilizar esse projeto foi criada a Jewish Colonization Association, conhecida como ICA, que em 1909 comprou mai sde noventa mil hectares no Rio Grande do Sul, onde eles se estabeleceram. Cada colono adquiriu a prestações o seu pedacinho de terra para recomeçar a vida. Nenhum deles era rico, pois estavam endividados com a compra da propriedade e muitos ainda nem tinham aprendido o português. Isso era suficiente para não não se importarem com a política nacional. Então, foi com espanto que os colonos receberam a invasão dos revolucionários.

O ATAQUE

No inquérito policial que se seguiu ao evento criminoso, conduzido pelo subchefe de polícia de Passo Fundo, Dr. Miguel Chmielewski, desfilaram os colonos extorquidos e aterrorizados pelos revolucionários, frente a autoridade legal. Não se sabe quem foi a primeira vítima, pois os revolucionários se espalharam pelo território da povoação, atacando estrategicamente todos os pontos da localidade durante a noite e o dia. As queixas dos moradores são as mesmas. Percebe-se nelas que o objetivo central do grupo invasor era apenas a pilhagem da população. De todos os colonos abordados foi exigido dinheiro em espécie, depois roupas e ferramentas, alimentação e cavalos. A nenhum deles falou-se da conjuntura política – apenas dois colonos foram acusados genericamente como chimangos (governistas).
O agricultor Jacob Sirotsky, 58 anos, viajava numa carroça de quatro rodas quando foi assaltado pelos revolucionários. Tomaram-lhe dois contos e quinhentos mil réis, mais outro tanto em mercadorias.
Jaime Melnik, dono da atafona (moinho) local, perdeu vinte sacos de farinha de mandioca e três sacos de polvilho, mais roupas, utensílios e ferramentas. Destruíram a sua plantação de milho e mandioca, como também o mandiocal de Marcos Nagelstein, e levaram deste mais um boi, oito sacos de farinha de mandioca e também roupas.
Tomaram de Leão Agranionik quatro cavalos e do madeireiro Gregório Ioshpe, roupas e objetos.
Os Matone perderam um cavalo arreado e dinheiro. Saquearam o armazém dos Brochman.
A lista prossegue por tantos outros colonos, que tiveram as suas vacas carneadas, a plantação devastada e o dinheiro de sua economias, já que não havia bancos, tomado pelos invasores. Os relatos mostram como foi a coleta de recursos pelos revolucionários.
Ao agricultor Manoel Weinstein, de 29 anos:

“(...) revistaram-o tirando-lhe do bolso a quantia de cinqüenta e dois mil reis em dinheiro, dizendo-lhes que não lhe tomaram o casaco porque estava muito velho e rasgado (...)”.

Outro agricultor, Abraão Raskin, de 45 anos, foi levado a presença do coronel favorino Pinto e espancado com rebenques e espadas. Pretinho, o filho do chefe do bando, arrancou-lhe a barba com uma faca, tirou-lhe a roupa e roubou-lhe seis mil réis.
Pedro Birman, 55 anos, foi arrastado por uma corda no pescoço de sua casa até o chefe do bando.
Sanson Schwartzman, de 36 anos, ante ao bando:
“(...) cahiu quase desmaiado e sua mulher e as creanças choravam e gritavam implorando aos revolucionários que não o matassem(...)”.

A família de Ichiel Feldman ante as agressões fugiu de sua casa:
“(...) na precipitação (eles) esqueceram uma creança de três anos (...)”.

Ninguém escapou a sanha dos saqueadores. Até a Jewish Colonization Association (ICA) foi extorquida. Três revolucionários, sendo um deles o Pintinho, invadiram por uma janela a casa do agrônomo David Sevi, representante da sociedade na colônia e exigiram quarenta contos de resgate, depois o coronel Favorino Pinto diminuiu o pedido pela metade, finalmente aceitou receber uma quantia menor escriturada em recibo:

EMPRÉSTIMO DE GUERRA. De ordem do Sr. Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias [leia-se o capitão Luis Carlos Prestes] em operação no norte do estado recebi da Jewish Colonization Association, representada na pessoa do seu diretor David Sevi a importância de três contos de réis (3:000.000) a título de empréstimo. Acampamento na fazenda de Quatro Irmãos, quatro de dezembro de mil novecentos e vinte e quatro. (assignado) Favorino Pinto Coronel comandante de guerra”.

AMORTE DO COLONO

A invasão culminou com o desaparecimento do agricultor David Faiguenboim (na foto acima), de 62 anos, oriundo de Shargorod e pai de nove filhos. Ele era um homem religioso que muitas vezes liderava as orações comunitárias. A única fotografia que sobreviveu mostra um homem de barbas longas com um livro de orações. Dado sinal do desaparecimento pelos familiares, os vizinhos saíram a sua procura e só depois de algum tempo o colono Usher Galodnik e Maurício Faiguenboim (1906-1971), filho da vítima, descobriram o corpo degolado escondido numa touceira de mato. Ele tinha uma ferida que:

“(...) abrangia a fronte, a começar pelo lado direito da mesma, atravessava o nariz, cortado profundamente e atravessava a vista esquerda, que estava vasada, estendendo-se bem assim no nariz. Os ferimentos foram produzidos por um instrumento cortante, além disso verificaram-se que em redor do pescoço havia signaes no cadáver, do vestígio de um laço apertado de uma corda (..)”

Como ele não sabia português, é possível que tenha sido assassinado por mão compreender a cupidez dos revolucionários.
Depois de dois dias de pilhagem em Quatro Irmãos, percebendo a chegada das tropas Legalistas, os saqueadores seguiram em frente incorporando-se ao destacamento do tenente João Alberto (1899-1955) com que fizeram toa a campanha da Coluna Prestes pelo interior do Brasil. Ali não foram cobrados pelo comportamento indigno, nem pelos companheiros de armas, nem pelos autores que se ocuparam deste grupo insurreto. Eles tornaram natural o saque as populações desarmadas como método de abastecimento.

“(...) Neste ponto não tínhamos escrúpulos – afirmou o capitão Luiz Vieira Fagundes, combatente gaúcho numa entrevista na década de setenta – Pegávamos com naturalidade do alheio, o que tinha pela frente era nossa alimentação. Não tínhamos dinheiro para comprar, não tínhamos de onde tirar, nós usávamos aquilo como se fosse nosso (..)”.

Já no fim da jornada, somente dois dias antes de deixarem o solo nacional, em dois de fevereiro de 1927, o coronel Favorino Pinto foi denunciado ao Estado Maior revolucionário por acumulação de uma fortuna “obtida por meios ilícitos”, segundo a documentação revolucionária preservada no Arquivo Edgar Leuenroth (UNICAMP). Feita a revista no oficial gaucho encontrou-se além de muitas jóias preciosas uma quantia inventariada em dezenove contos e novecentos mil réis (o valor de dois automóveis novos na época) que foi confiscada em parte pelo general Miguel Costa (1874-1959) em benefício do patrimônio coletivo da Coluna Prestes. Levaram mais de dois anos para descobrir as atividades criminosas desse revolucionário, mas, enquanto isso aproveitaram-se e bem dessa pilhagem para o sustento da expedição. Ele só foi “punido” nos últimos momentos em terras brasileiras. O coronel Favorino Pinto morreu cinco meses depois, em Pasos de los Libres em conseqüência de uma hemorragia cerebral. Hoje é personagem elogiado nos livros sobre a Coluna Prestes.
O saque a colônia de Quatro Irmãos apressou o seu fim. Quarenta famílias judias e três católicas, amedrontadas pela violência, fugiram para Erechim e dali procuram novas plagas. Foram seguidas depois por outras famílias que, descapitalizadas pelo saque, abandonaram também a sua vida rural, espalhando-se pelo Brasil em busca de uma vida mais segura. Eles que já tinham deixado a Europa Oriental pelo medo dos pogroms (destruição de comunidades judaicas) foram embora de Quatro irmãos, mas sem esquecer o episódio sangrento vivido, tanto que, se a memória destas famílias não tivesse guardado esses fatos, é provável que esse fosse mais um episódio condenado ao esquecimento.

Campinas, S. Paulo, Brazil
Historiador, Mestre em História Social (USP). Autor de "A presença oculta. Genealogia, identidade e cultura cristã-nova brasileira nos séculos XIX e XX": co-autor do "Dicionário Sefaradi de Sobrenomes / Dictionary of Sephardic Surnames" , "B.J. Duarte, caçador de imagens" e “Os primeiros judeus de S. Paulo - uma breve história contada através do Cemitério Israelita de Vila Mariana”.


BIBLIOGRAFIA

COSTA, general Miguel. Boletim Reservado nº 3, Baia Bela, 2 de fevereiro de 1927 – Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP, LMC.CL.209 P.3 e CL.210 P.3.
FAERMAN, Martha Pargendler. A promessa cumprida. Porto Alegre: Metrópole, 1990.
FELDMAN, Marcos. Memórias da Colônia de Quatro Irmãos. S. Paulo: Maayanot, 2003.
JEWISH COLONIZATION ASSOCIATION (ICA), 1902-1968, 71 caixas – ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO.
LIMA, Lourenço Moreira. A Coluna Prestes – marchas e combates. S. Paulo: Alfa-Ômega, 1979. PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. S. Paulo: Paz e Terra, 1997.

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