quinta-feira, 3 de outubro de 2013

André Lara Resende: "O Estado no Brasil é um expropriador de renda"


O economista, um dos pais do Plano Real e agora interlocutor de Marina Silva, propõe o combate às desigualdades e um Estado mais eficaz para aumentar o bem-estar na sociedade

GUILHERME EVELIN, COM MARCOS CORONATO
21/09/2013 10h00

ALÉM DA CONJUNTURA Lara Resende,  em abril deste ano. Ele diz que  o governo não dá atenção à qualidade de  vida nas cidades (Foto: Ana Paula Paiva/Valor Econômico/Ag. O Globo)
André Lara Resende foi um dos formuladores do Plano Real, o programa de estabilização da inflação brasileira. Chegou a se considerar um ex-economista. Ao tentar voltar à academia, encontrou uma teoria econômica “dominada por um formalismo estéril, irrealista e desinteressante”. Voltou-se, então, para uma área da economia que discute se crescimento e riqueza levam à felicidade e ao bem-estar. Depois da crise internacional de 2008, diz Lara Resende, a economia voltou a ser “interessante”. Seus interesses se ampliaram para meio ambiente, filosofia, psicanálise. Esses temas o aproximaram da ex-senadora Marina Silva. Neste ano, ele lançou Os limites do possível – A economia além da conjuntura (Cia. das Letras).  

ÉPOCA – O senhor abraça a ideia de que o crescimento econômico está próximo de se esgotar por causa dos limites do planeta. Muita gente no Brasil, país com vasta população pobre, torce o nariz para essa tese. Como conciliar ambientalismo com diminuição da pobreza?
André Lara Resende –
 Quando digo que o crescimento do consumo material está próximo de seu limite, faço uma observação genérica, para todo o planeta. É evidente que 8 bilhões de pessoas no mundo não poderiam ter o nível médio de consumo dos países avançados de hoje, sem bater nos limites físicos do planeta. Não significa que não possa mais haver crescimento em nenhuma parte do mundo. A partir da segunda metade do século XX, o consumo e a renda cresceram espetacularmente, mas a desigualdade continua inaceitável. Nem mesmo a pobreza absoluta foi eliminada. A desigualdade agravou-se nas últimas décadas, até mesmo no país mais rico do mundo, os EUA. O crescimento econômico não reduz automaticamente a desigualdade. Também não é condição para a redução da desigualdade, quando a renda média já atingiu o nível da renda do Brasil de hoje. Argumentar que a defesa do meio ambiente é necessariamente feita à custa da pobreza da população, num país com a economia e a renda do Brasil, não faz sentido. É preciso rever a noção de bem-estar e dissociá-la do aumento do consumo material. Estudos recentes mostram que, a partir de certo nível de renda, a qualidade de vida, o tempo com a família e os amigos, o acesso fácil ao trabalho e ao lazer são elementos mais importantes do que o aumento do consumo material para o bem-estar.
>> Mariana Mazzucato: "A economia sofre com empresas parasitas"

ÉPOCA – Para aumentar o bem-estar, o senhor propõe uma síntese que concilie o combate às desigualdades e a diminuição da interferência do Estado na economia e na sociedade. Não são caminhos antagônicos?
Lara Resende –
 A contradição entre redução das desigualdades e menor interferência do Estado é bem menos intransponível do que se acredita. Não há nenhuma garantia de que mais interferência do Estado signifique necessariamente menos desigualdade. A experiência brasileira, onde o Estado sempre foi grande e não para de crescer, mas a desigualdade só recentemente deu sinais de alguma melhora, é um bom exemplo. É claro que instituições democráticas, respeito à lei, serviços públicos essenciais, como educação, saúde, saneamento, segurança e transportes, são fundamentais para formar sociedades equânimes. Muito mais importante do que o tamanho do Estado é a qualidade do Estado e dos serviços que ele presta.
"A política do nacional-
desenvolvimentismo é
profundamente anacrônica"
ÉPOCA – O senhor considera velho o projeto do Estado brasileiro, que resumiu como a combinação de uma rede de proteção social com industrialização forçada. O que seria um Estado moderno?
Lara Resende –
 Um Estado que cumprisse seu papel de servir à sociedade e ao bem comum. Na velha tradição patrimonialista, o Estado brasileiro de hoje não distingue o limite entre o público e o privado. Não percebe que seu papel não é abusar do poder em causa própria, ou para beneficiar seus amigos e aliados, mas servir ao bem comum e à sociedade. Embora extraia hoje quase 40% da renda nacional, mais que em muitos países avançados, o Estado brasileiro investe muito pouco e presta serviços da pior qualidade. Gasta grande parte do que arrecada para custear sua própria operação. O Estado passou a ser percebido não como um aliado, prestador de serviços fundamentais, mas como um expropriador de renda em causa própria, que cria dificuldades e impõe obrigações à população. É preciso mudar esse quadro.
ÉPOCA – O senhor já relacionou as manifestações de junho com opções equivocadas da política de desenvolvimento do país. Quais são esses equívocos?
Lara Resende –
 A política econômica no Brasil, sobretudo depois dos dois primeiros anos do primeiro governo Lula, parece estar pautada pelo nacional-desenvolvimentismo intervencionista. Formulado nos anos 1950, ele foi referência para a política econômica dos governos militares nos anos 1970. Com ênfase na industrialização autárquica, baseada no argumento da indústria nascente, sob liderança do Estado, esse tipo de política pode ter tido seu papel, mas é hoje profundamente anacrônica. As economias que superaram aquilo que os economistas chamam de “armadilha da renda média” e alcançaram as do Primeiro Mundo foram as que se abriram para o comércio internacional, se integraram num mundo globalizado, aumentaram a produtividade e se tornaram grandes exportadoras. Além disso, uma vez atingido um nível razoável de renda, a correlação entre bem-estar e consumo material se enfraquece. Outros fatores, como a qualidade de vida nas cidades, completamente desconsiderados pela política do governo, se tornam mais importantes.
ÉPOCA – O senhor disse, sobre as manifestações, que a sociedade não se reconhece nos Três Poderes. Somos uma democracia jovem. Por que esse desgaste de representatividade?
Lara Resende – 
A insatisfação com a democracia representativa não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ainda não estão bem claras as razões dessa insatisfação. Talvez uma combinação de sociedades mais heterogêneas e complexas que as do início do século passado, com o avanço das comunicações e da internet, exija algum tipo de revisão do modelo atual de democracia representativa. Não há, entretanto, alternativa para a democracia representativa. Pode ser preciso aperfeiçoá-la, atualizá-la, adaptá-la aos tempos de hoje. Mas não existe nada capaz de substituí-la.
ÉPOCA – Um dos capítulos de seu livro diz que não há mais oposição entre direita e esquerda, mas entre conservadores e progressistas, e lamenta que não exista um partido conservador no Brasil, como no Reino Unido. O senhor é conservador ou progressista?
Lara Resende –
 O rótulo “de direita” ficou excessivamente vinculado à indiferença ao sofrimento alheio, ao egoísmo e à falta de compaixão, para estar associado a qualquer iniciativa pública. Lamento a falta de representatividade política do que chamo de um conservadorismo ilustrado, que se opõe à crença em propostas idealistas totalizantes, que têm a solução de todos os males. Nem todos os males da humanidade são sociais e têm cura, mas não me considero um conservador, porque acredito que é nosso dever procurar melhorar, nós mesmos, a sociedade e o mundo.
ÉPOCA – O senhor tem conversado com a ex-senadora Marina Silva, possível candidata à Presidência. Falam de economia ou tratam de outros assuntos?
Lara Resende – 
Converso com ela com alguma frequência. Falamos sobre muitos assuntos, não exclusivamente de economia, talvez até menos sobre economia.
ÉPOCA – Como o Brasil será afetado pelo novo cenário internacional, em que as perspectivas de mudanças na política do Fed, o Banco Central dos Estados Unidos, já causaram abalos nos países emergentes?
Lara Resende – 
O Fed já deu sinais de que começará a reduzir as compras de títulos privados do programa que se convencionou chamar de “Quantitative Easing” (expressão em inglês para uma política que injeta dinheiro no mercado). Os primeiros efeitos sobre os mercados já se fizeram sentir: a alta dos juros nos EUA e a valorização do dólar, principalmente em relação às moedas dos países de economias emergentes. Até o momento, por ter acumulado um grande estoque de reservas internacionais nos últimos anos, apesar da desvalorização do real, o Brasil se saiu relativamente bem. A Índia está em situação mais complicada. Quando o Fed der início à mudança da política atual, deixar de comprar títulos e aumentar a taxa básica de juros americana, a pressão sobre as economias emergentes aumentará. O estoque de reservas internacionais ajuda, mas não é suficiente.
ÉPOCA – O que fazer para não sermos atingidos por uma crise?
Lara Resende –
 Com os sinais de recuperação da economia americana e a perspectiva de encerramento da política monetária expansiva e dos juros próximos de zero do Fed, fica mais difícil ter uma política monetária menos restritiva no Brasil, sem provocar pressões no câmbio e aumento da inflação. O certo seria apertar a política fiscal, cortar gastos correntes do governo, se possível sem cortar os investimentos públicos, para que o juro não tivesse de subir excessivamente e sacrificar o investimento privado. É preciso que a política macroeconômica, especialmente a política fiscal, esteja em ordem, para evitar que uma crise de credibilidade se sobreponha às inevitáveis pressões sobre o câmbio, sobre as contas externas e sobre a inflação.
ÉPOCA – O brasileiro poupa pouco, gasta e se endivida muito, assim como o Estado brasileiro. Isso é um traço cultural?
Lara Resende –
 Difícil dizer. Fato é que o brasileiro poupa pouco, e isso dificulta o financiamento dos investimentos para o aumento de nossa produtividade. Ao menos, o governo poderia fazer sua parte: reduzir os gastos correntes e aumentar o investimento, sobretudo em educação, saúde e transportes coletivos. 

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