segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Um sentido terapêutico da Poesia e da Música



CARLOS VIEIRA
Outra noite estava ouvindo um telejornal. Como é frequente e parece um propósito jornalístico – notícia boa para ser vendida é notícia ruim. 
Às vezes penso que o sadismo jornalístico encontra uma parceria no sadismo e masoquismo da população. Deixando de lado a pretensão de julgar os interesses comerciais da mídia, quero dividir com o leitor minha angústia com as frequentes notícias de assassinatos, violência urbana, corrupção, fome, miséria etc. 
De repente fui tomado de um desconforto psíquico profundo: tristeza, ausência de esperança nesse mundo pós-moderno, raiva pelas injustiças sociais, descrédito governamental do que acontece em São Paulo nesse momento, enfim, o lado negro do “país emergente” e do fracasso do socialismo e capitalismo. 
Inquieto, procuro me distrair daquela ansiedade. Deparo-me, por um lado, com um poema de Mário de Andrade e, com a possibilidade de dissolver um instante de turbulência emocional buscando um refúgio – a música. 
Os versos de Mário de Andrade compõem significativo poema - MOMENTO – de abril de 1937:
“O vento corta os seres pelo meio, 
Só um desejo de nitidez ampara o mundo... 
Faz sol. Fez chuva. E a ventania 
Esparrama os trombones das nuvens no azul.
Ninguém chega a ser um nesta cidade, 
As pombas se agarram nos arranha-céus, faz chuva. 
Faz frio. E faz angústia... É este vento violento 
Que arrebenta dos grotões da terra humana 
Exigindo céu, paz e alguma primavera".
Manuel Bandeira tinha razão quando atentava para o fato de que, o “Modernismo” de Mário não era pronunciador de uma inquietação nacional. “Interpretar o Brasil com rude franqueza, como já o fizera Lobato, falar ao Brasil com os estouros das campanhas civilistas de Ruy, mas aplicando às artes a nova técnica – eis o ponto capital da folha de serviço dessa geração, na qual foi Mário de Andrade o pioneiro e aquele que mais sacrificou de seu bem-estar e de sua própria criação artística.” 
A cada dia, estamos todos, idealística ou realisticamente desejando “céu, paz e alguma primavera”. 
Minha angústia transbordava por minhas veias psíquicas e, acho que não é exagerar, penso que nós brasileiros, contaminados por esses noticiários terroristas, diários, penetram, infiltram e se instalam em nosso estado de mente diário. 
Augusto dos Anjos num de seus versos primorosos escreveu: “O homem que nasce entre feras, sente necessidade imprescindível de também ser fera.” 
Ainda entediado, olhei ao meu lado a minha pequenina maletinha que guarda dentro de si – meu querido Clarinete em Si bemol. O desprazer anunciava seu fim, e um novo momento parecia se anunciar – um instante de doçura psíquica em meio à tormenta. 
Abrir a maletinha. Armar os vários segmentos do instrumento já são passos cadenciais e ritualísticos. Preparar a palheta, colocar ar no tubo para dar uma certa umidade, dedilhar algumas notas no registro grave, médio e agudo é uma cerimônia bela à procura do som. Logo em seguida, o que tocar, o que estudar? Antes de mais nada, “preludiar”: tocar uma sucessão de notas de escalas, espaços harmônicos e pequenos improvisos melódicos. Aquecer o instrumento, colocar a embocadura no lugar e entrar no mundo mágico do Som, da Música. 
Escolho uma peça: uma transcrição para Clarinete, de uma das Suítes de J.S. Bach, para Violoncelo Solo - a Suíte em Ré Menor – Seu Prelúdio, como todo prelúdio, anuncia e introduz a obra. Belas sucessões melódicas e harmônicas de uma composição suave triste, mas linda, e às vezes enérgica em suas notas graves de apoio. Experimentava naquele momento, que o “tédio do quotidiano” se distanciava como uma onda gigante, dando lugar a um mar calmo, reluzente de um sol a pino, transformando a sua superfície em lampejos de estrelas reluzentes sobre cores de arco-íris. 
Recordo-me nesse momento de Bandeira em seu belíssimo livro – Seleta de Prosa – Escreve o “pernambucano-carioca”!. Aliás, existem vários “pernambucanos-cariocas” na história da literatura brasileira: “Maior ainda foi em mim a influência da música. Não há nada no mundo de que eu goste mais do que de música. Sinto que na música é que conseguiria exprimir-me completamente. Tomar um tema e trabalhá-lo em variações ou, como na forma sonata, tomar dois temas e opô-los, fazê-los lutarem, embolarem, ferirem-se e estraçalharem e dar vitória a um ou, ao contrário, apaziguá-los num entendimento de todo repouso... creio que não pode haver maior delícia em matéria de arte.” 
À medida que ia brincando, tentando tocar o prelúdio de Bach, meu desconforto e meu tédio existencial davam lugar a um momento de prazer, satisfação, ternura, paz e lenitivo para suportar as dores do mundo. 
Quis hoje, prezado leitor, compartilhar um efeito terapêutico, ainda que passageiro, da poesia e da música em minha vida, e por que não na sua? 
Relembro e parabenizo o Ministério da Educação pela iniciativa da volta do estudo de música nos cursos da educação fundamental. Oxalá que repensem também o ensino da literatura, não de uma forma compacta e superficial dos nossos escritores, mas o aprendizado das suas obras integrais.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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