Série de reportagens que O GLOBO inicia hoje, busca debater questões que vão da imigração ilegal ao excesso de consumo, dos novos problemas de saúde ao número maior de idosos, da geração dos hiperconectados à nova diplomacia
Os avanços do Brasil nos últimos anos fazem o país viver situação peculiar: embora milhões persistam na pobreza, aumentou o número de brasileiros no topo da pirâmide, o que significa enfrentar também desafios de nações desenvolvidas. A série de reportagens “País emergente, problemas de rico”, que O GLOBO inicia hoje, busca debater questões que vão da imigração ilegal ao excesso de consumo, dos novos problemas de saúde ao número maior de idosos, da geração dos hiperconectados à nova diplomacia.
San Juan de Corralito é um daqueles lugares esquecidos pela civilização. Uma fileira de barracos feitos de tábuas desiguais margeia o rio que separa Brasil e Bolívia. Nas vendinhas, produtos básicos são comercializados ao som de Michel Teló nos alto-falantes. No paupérrimo povoado boliviano, o número de “brasileiros” vem crescendo. As bolivianas grávidas cruzam os limites do país para dar à luz na cidade de Cáceres, no Mato Grosso, de forma a garantirem aos seus bebês uma cidadania com mais direitos. E não é só isso. A fim de driblar uma vida miserável, os bolivianos adultos obtêm a nacionalidade brasileira por meio de uma certidão de nascimento tardia. Com isso, eles conseguem receber o Bolsa Família e até a aposentadoria pelo INSS, no Brasil, apesar de continuarem a viver na pátria de origem.
— Você não veio do Brasil para me deixar mal com meus vizinhos, né?! — afirma um morador da vila boliviana, que não quis ser identificado, mas que confirma a história. — Tem muita gente que nasceu aqui, mas conseguiu o documento brasileiro e recebe uma aposentadoria.
Esse boliviano não acha certo fazer isso, mas entende quem usa esse recurso para melhorar de vida, porque a assistência do governo de seu país é precária. O “Bolsa Família” boliviano, pago para aqueles que mantêm o filho caçula na escola, é de apenas R$ 70 por ano. Ele, que é pai, viu os filhos mais velhos fazerem as malas e partirem para o Brasil. E assiste aos mais novos traçarem os mesmos planos.
A cem quilômetros da fronteira com a Bolívia, o cartório da cidade de Cáceres recebe cerca de três pedidos por mês dessas certidões de nascimento tardias. Segundo Juliano Alves Machado, oficial de registro civil do município, frequentemente os bolivianos requerem o documento. Quando há evidências de que o pedido foi feito por um estrangeiro, o processo é encaminhado à Justiça.
ATÉ 500 mil ilegais
Apenas três processos foram julgados improcedentes neste ano. Um deles datava de 1994. Nele, a pessoa que se dizia brasileira nem sabia falar português. Fontes dos dois lados da fronteira confirmam que vem crescendo o número de bolivianos que vão até Cáceres para conseguir o documento. E eles voltam todo os meses para sacar os benefícios do governo brasileiro.
— Nós já sabemos disso — afirmou ao GLOBO o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, com relação ao pagamento de aposentadoria e outros benefícios para estrangeiros que vivem fora do Brasil.
Protagonista do crescimento econômico na América do Sul e com um mercado de trabalho ainda aquecido, o Brasil nunca atraiu tantos imigrantes. Já há 1,54 milhão de estrangeiros vivendo legalmente no país. Com relação aos ilegais, não há registros precisos, mas as estimativas chegam a 500 mil. O governo é mais conservador e prefere adotar as projeções feitas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 150 mil ilegais.
As crianças bolivianas cruzam a fronteira todos os dias para estudar na escola do Exército Brasileiro. Não há restrições para estrangeiros frequentarem escolas públicas aqui. O taxista Benedito da Silva assiste ao vaivém das crianças enquanto espera passageiros do lado brasileiro da fronteira, no povoado de Corixa. Ganha R$ 150 por viagem até Cáceres. Ele leva bolivianos que querem comprar comida e volta com sacoleiros em busca das quinquilharias do outro lado.
— Quando o dólar está bom, faço três viagens por dia.
Em Cáceres, a bioquímica boliviana Zulma Chuque trabalha como camelô. Vende sapatos da Bolívia, mas sonha em trabalhar em um laboratório e diz que já deu entrada nos papéis para obter o reconhecimento de seu diploma. Quando ouve a pergunta sobre sua situação como imigrante, interrompe a entrevista e diz que não quer ser fotografada.
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