De tudo o que já disse do recém-iniciado julgamento do Mensalão, há um aspecto óbvio que o permeia desde sempre: o sistema político brasileiro – o chamado presidencialismo de coalizão. Ele, ao lado dos mensaleiros, está no banco dos réus.
A alguns isso poderá soar como um atenuante às trapaças perpetradas pela “organização criminosa”, termo cunhado pelo procurador-geral anterior, Antônio Fernando de Souza, e endossado pelo atual, Roberto Gurgel. Não se trata, porém, de atenuar nada; apenas de ir à raiz dos fatos.
No sistema em voga, não se governa sem maioria – e obtê-la tem um custo, não necessariamente financeiro. O PT, no rastro da euforia da primeira eleição de Lula, poderia (e deveria) ter posto em prática a reforma política, com a qual, a exemplo dos partidos que o precederam no poder após o regime militar, havia se comprometido. A falha aí, como é óbvio, não foi apenas dele, PT.
O que o distingue negativamente dos demais foi a opção que fez - a mais fácil e nociva: manter o sistema à base da compra de votos e torná-lo permanente. O Mensalão.
A engenharia perversa que montou – e que o procurador-geral ontem esmiuçou com detalhes espantosos – se pretendia inabalável. Era, aparentemente, o crime perfeito e só poderia – como de fato o foi – ser destruído de dentro para fora.
Não fosse a delação de Roberto Jefferson e possivelmente não se teria conhecimento daquela engrenagem, que surrupiou milhões dos cofres públicos.
O governo tinha não apenas a garantia de maioria parlamentar, como, pelo controle de cada recebimento de cada um dos beneficiários, os tinha também como reféns. Em tese, ninguém faria qualquer denúncia, sob pena de incriminar-se também.
Napoleão dizia que a um soldado podia se pedir qualquer coisa, menos que se sentasse sobre a baioneta. Eis, porém, que não há lógica onipotente. Roberto Jefferson, por exemplo, optou por outra: a de que um homem acuado é capaz de qualquer coisa, até de sentar-se sobre a baioneta.
A denúncia do Mensalão foi precedida de recados. Jefferson, antes da célebre entrevista à Folha de S. Paulo, havia sido alvo de reportagens que o responsabilizavam pela corrupção nos Correios.
As imagens de um servidor recebendo propina - e que dizia estar ali por nomeação dele, Jefferson - correram a internet e os telejornais, e o empurraram para o centro das atenções.
Supunha-se que se conformaria com o papel de boi de piranha para não se comprometer ainda mais, negociando uma saída honrosa de cena. Ele, porém, teve outra compreensão. Optou pela solução kamikaze e, como um Sansão às avessas – e dentro do princípio do “perdido por um, perdido por mil” -, quebrou as colunas do templo e sucumbiu sob os escombros.
Preservou Lula por ver nele uma instância extrema de negociação, como deixa claro em seu livro “Nervos de Aço” - e já o ameaçara, antes, no discurso na Câmara, com que tentou escapar da cassação. Na ocasião, disse que “o Rei (Lula) estava nu”.
Essa nudez, no entanto, até aqui, continua preservada, embora o próprio Lula, ao abordar ministros do Supremo Tribunal Federal, na tentativa de adiar o julgamento, tenha promovido por conta própria seu strip-tease particular.
É claro que ninguém que, direta ou indiretamente, lida com a política ignora o seu envolvimento.
É claro que ninguém que, direta ou indiretamente, lida com a política ignora o seu envolvimento.
Cabia-lhe, como líder monocrático que é, o comando da estrutura que pôs em cena a engenharia do Mensalão, cujas reuniões mais importantes, segundo revelou ontem o procurador Roberto Gurgel, ocorriam no Palácio do Planalto. Nada menos.
A esta altura, a condenação dos réus principais não é o essencial. A simples exposição da lambança - e ninguém duvida dos fatos narrados e documentados pelo procurador – já lança mancha indelével sobre o governo Lula.
A condenação de José Dirceu, à luz do direito anglo-saxônico, em que bastam as evidências das conexões, seria inevitável. No direito brasileiro exige-se mais: o documento, a impressão digital, que documente materialmente a ação.
Como nesses casos – e o procurador o lembrou ontem – não se passa recibo, nem se deixam rastros, é possível que o mentor da organização saia ileso, como Fernando Collor, depois de sofrer o impeachment, saiu.
O sistema político é ruim, disfuncional, não há dúvida. Mas enfrentá-lo com as armas do crime não é outra coisa senão crime. E é esse o registro que o julgamento, desde já, passa à História. Não importa o resultado.
Ruy Fabiano é jornalista
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