CRÔNICA
Uma das manifestações mais impressionantes e menos conhecidas do Império Inca são os santuários erigidos no topo das montanhas mais altas da Cordilheira dos Andes. Estes lugares - tão perto do sol, da lua e do céu - eram centros de peregrinação e cenários para a realização de rituais.
Em toda a Cordilheira há cerca de umas 200 montanhas com restos arqueológicos, sendo 40 no território argentino. Mas em pouquíssimas foram descobertos o tesouro que guarda hoje a cidade de Salta: oferendas humanas.
Não há manifestação similar em outra parte do Planeta. Nem sequer no Himalaia.
A principal descoberta foi feita em 1999 no topo do Cerro Llullaillaco (6.739 metros), o mais alto da região, por uma equipe da National Geographic. Enterrados a um metro e meio de profundidade, debaixo de gelo e pedras, estavam três crianças incas em perfeito estado de conservação.
Uma pequena de seis anos, conhecida hoje como “A Menina do Raio”, um segundo corpo batizado de “O Menino”, de sete anos, e uma adolescente de 15 anos, “A Donzela”. As múmias podem ser vistas, uma por vez, no Museu de Arqueologia de Alta Montanha de Salta, um espaço que surpreende pelo acervo, tecnologia e respeito ao passado.
Essas crianças, os “Niños de Llullaillaco”, tinham com eles 160 peças que compunham seus respectivos “ajuares”, uma espécie de enxoval com oferendas. Estes objetos também estavam intactos e ajudaram os especialistas a entender como eram os rituais no passado pré-hispanico.
Antes de serem ofertadas às montanhas, crianças de diferentes partes do Império Inca,selecionadas por sua beleza e perfeição física, faziam uma peregrinação até Cusco, onde passavam por uma longa cerimônia, conhecida como “Capacocha”, ou “obrigação real”.
Nesse momento, recebiam oferendas de todo o território - conchas marinhas da costa do Equador, plumas das selvas orientais, lãs da cordilheira dos Andes. Essas peças, que também podiam ser de madeira, ouro, prata, couros ou fibras vegetais - eram levadas com eles de volta para suas aldeias originais de onde, com suas melhores roupas, começavam a subida à montanha. Os objetos que levavam reproduziam o mundo Inca em miniatura.
No alto, bebiam “chicha”, álcool de milho, até dormir. Em seguida, eram enterrados.
Segundo os Incas, elas não morriam, e sim se reuniam com os antepassados para observar os povos desde o alto. As vidas entregues seriam retribuídas com saúde e prosperidade e serviam para estreitar os laços entre o centro do estado e as aldeias mais distantes (e assim manter a unidade do império inca) e também entre os homens e os deuses.
As múmias e seus objetos são capsulas do tempo de valor incalculável para a ciência e para a cultura.
Vê-las intactas, semana passada quando estive viajando pelo norte da Argentina, mais de 500 anos depois de mortas, foi uma das cenas mais emocionantes que já vivi e o mais perto que cheguei do entendimento da palavra ancestralidade.
Gisele Teixeira é jornalista. Trabalhou em Porto Alegre, Recife e Brasília. Recentemente, mudou-se de mala, cuia e coração para Buenos Aires, de onde mantém o blog Aquí me quedo, com impressões e descobrimentos sobre a capital portenha
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